12 de abril de 2014

[201] Último Episódio: De homens e histórias

       
        - Vão demolir amanhã, ouvi dizer. Se não demolissem, cairia por si só. É bom mesmo que o façam.
Da janela do restaurante modesto, de cores sóbrias e comida de uma simplicidade quase elegante, via-se a já tão reduzida praça, com dois banquinhos metálicos onde a ferrugem crescia feito um fungo. Duas ruas consideravelmente largas eram preenchidas por carros sempre mais brilhantes e potencialmente mais velozes – detidos, porém, pelo tráfego asmático – e depois delas, a pequena mancha de uma ruína cinza, volteada agora por outros prédios, tanto mais altos quanto mais bonitos. Como um idoso, em sua fragilidade, cercado por manifestações monumentais de um futuro cada vez mais branco e seco cujo tempo existência ainda não chegara nem à metade. 
- É uma pena. Prometo que deixarei de insistir em almoçar aqui a partir da próxima semana. O que mais gostava era apenas dar uma olhada nesse prédio porque eu sabia que ele não poderia ficar aqui sempre, não é? 
         As maçãs da face eram descoloridas por uma maquiagem formal e as rugas já lhe reivindicavam o direito de lhe tirar o aspecto juvenil que outrora se fazia tão evidente. Os cabelos, eles sim, continuavam ruivos e brilhantes, ainda que amarrados em uma espécie de nó às costas de sua cabeça. 
        - Nunca me falou com mais detalhes sobre esse tal padre do prédio velho, Hermínia. Mas deve ter sido um daqueles homens que tiram a gente do eixo pra que você pense nele até hoje, imagino. 
Ela tornara-se uma daquelas mulheres de negócios, com seus terninhos risca de giz e sapatos cujo salto faz deixa um rastro de toc-toc que faz os homens atentarem ao desfile. Era agora mais familiarizada com planilhas, números e códigos do que com festas. Não bebia mais. 
- Já lhe contei quase tudo que pude, não o conheci por muito tempo. Despedi-me dele no dia em que lhe conheci. Era um dia importante pra nós dois: o meu primeiro dia de trabalho e o primeiro dia dele, assim, solto no mundo. Espero que o destino dele tenha sido mais excitante que o meu. 
- E nunca mais se falaram depois?
- Bom, tivemos precisamente duas ligações e meia dúzia de correspondência. Ele nunca me disse o que planejava fazer da vida ou onde estava vivendo. Deixei-o na rodoviária antes que ele comprasse seu bilhete e ele olhava o painel de possíveis destinos como quem escolhe um sanduíche. Não imaginava que ele fosse sumir assim. Perguntei-me durante muito tempo se ele levou alguma mágoa de mim ou se podia ter insistido que ele ficasse por aqui mais um tempo antes de decidir, de fato, o que deveria fazer da vida. Ah, eu pensei nele durante muito tempo...
O Edifício Cinza apresentava-se aos olhos de Hermínia como uma lápide, um sinal de que um dia ela teve uma ligação com Otávio, algo que já aconteceu e brevemente encontrou encerramento. E todo mundo – sabemos bem – perde um dia ou dois em meio à melancolia de uma memória longínqua que emerge sem motivo aparente.
Onde estaria Otávio? Metido num terno, tirando o sapato para gozar de uns bons momentos de relaxamento enquanto sua esposa lhe prepara o jantar. Ou talvez com uma garrafa de vinho barato metida por debaixo do braço, recoberto de crostas de imundície amaldiçoando os passantes de uma avenida movimentada. Quem sabe não regressou à vida religiosa e agora é um padre maduro que lembra da aventura nesta Cidade e solta uma risada indulgente com seus próprios erros. Hermínia formulara muitas hipóteses no decorrer dos anos. Enquanto o fazia, conheceu vários homens e casou com dois deles, em momentos diferentes e permanecia ainda com o último, descobriu-se estéril e sentiu-se frustrada por não poder ter um bebê, anos mais tarde adotou um menininho de dois anos com dois grandes olhos de ameixa preta que lhe conquistaram, teve doenças e recuperações, apenas um emprego, no qual se tornara realmente competente e menos orgulhosa do que poderia ser. Enfim, distraiu-se em todas as distrações que, em seu conjunto, forma a vida cotidiana e amarela de todas as pessoas. 
         Pouco importa, de fato, onde está Otávio e se ainda vive. O que Hermínia descobrira, apesar de nunca falar, é que isto realmente pouco importa. Seja qualquer um o rumo de uma vida qualquer nesse Mundo, sob o cinza do concreto ou sob o espectro de cores mais acalentador e dócil, todos viram histórias. A única certeza que se tem sobre Otávio, o ex-padre sem rumo, é que agora é uma história, que pode passar em muitas bocas, em muitas versões que até provavelmente se contradizem, mas são todas verdadeiras. Uma breve história, que brilha feito fagulha – por um instante apenas -  na imensidão do tempo e um dia não será mais contada, nem será lembrada. Uma tumba que habita o cemitério mental de alguns outros humanos, porque todos carregam um cemitério na cabeça, um cemitério de pessoas que viraram histórias. 
        Mais do que tudo: Otávio é um ser humano. E a forma mais autêntica de um ser humano é, sem dúvida alguma, a história.