14 de janeiro de 2014

[201] Sétimo Episódio: O que não tem conserto


Não nos foi concedido o domínio sobre nós, disto ninguém há de discordar. Quanto a mim, o que mais me aflige nessa vida é a distância sempre crescente entre intenção e ato, um descompasso que, ao ritmado comando do tempo, nos transforma naquilo que outrora detestávamos. O devir é sempre uma experiência pior do que se imaginara.
                Uma atmosfera de tensão rondava-me pelas últimas semanas: o rosto de D. Wilma parecia estar mais fechado do que de costume, mas também transmitir um abatimento profundo e sincero; um quê de censura saltava dos olhares dos meus paroquianos e grudava-se em minha fronte como a lanterna do sentinela que flagra um pretenso fugitivo. Senti-me injustiçado: se alguma vez desgarrei-me – e consigo mesmo admiti-lo – já me muni do firme propósito de emendar-me e neste caminho trilhei desde então. Mas as pessoas querem perfeição, enfileiram-se nos bancos da matriz como consumidores que pagam pela personificação da sabedoria lhes falando do púlpito, dando-lhes Deus transubstanciado em pão e ouvindo suas mazelas, aconselhando-os. Ninguém procurava confissão há dias, era o prelúdio de que algo estava acontecendo.
                Ao fim de uma Missa de terça-feira, meus dois coroinhas saíram precipitada e coordenadamente da sacristia obedecendo a um comando da cabeça demasiado grande de Wilma. Trazia na mão um grande envelope.
                - Não pense que tenho algum prazer em fazer isso, Frei. Se todos fossem compreensivos como eu, talvez não houvesse necessidade de se chegar a este extremo – mas em seus olhos, dançavam fagulhas de satisfação a despeito de seu discurso.
                Dispôs então vários itens retirados do envelope sobre a imponente mesa de mogno, que parecia especialmente lustrada para aquela ocasião. Papa e Bispo observavam, de suas molduras douradas, nossos movimentos. Cristo jazia na cruz, como sempre, entediado: certamente não lhe entretinham eventos tão banais.
                O inventário dos itens dispostos: uma carta de Dom Juarez, superior geral de minha Ordem de origem, atualmente alocado em Roma, que me concedera permissão para experimentar a vida diocesana para sanar minhas dúvidas vocacionais, provavelmente ordenava-me o regresso; uma carta do Conselho Paroquial, com a assinatura de cada uma das ilustres pessoas que o compunham e gozavam de prestígio diferenciado naquela comunidade; algo semelhante a um abaixo-assinado, que parecera-me ridículo; um envelope alvo, bem lacrado, com a palavra DOSSIÊ bem destacada em vermelho.
                Abri-o. Algumas páginas escritas a mão, com várias letras distintas, descreviam minha vida noturna – mais exagerada, obviamente, do que ela realmente fora enquanto existiu. Mas a parte maior do entretenimento eram as fotos, em quantidade econômica de pixels. Eu, com um cigarro na boca andando em alguma ruela. Eu, com um cigarro na boca à janela do meu apartamento. Eu, com uma taça de vinho em uma mesa de bar. Hermínia. Senti vontade de chorar e meu coração estava humilhado, teria pedido piedade se pudesse esperar algum resultado de uma atitude deste tipo. Na carta de meu superior, estava destacado o seguinte trecho da Regra de Santo Agostinho:

                “Assim também, o que fixa o olhar numa mulher e se deleita em ser olhado por ela não deve supor que não é visto por ninguém quando faz isto; certamente que é visto e por aqueles que ele nem imagina que possam ver. Porém, mesmo que permaneça oculto e não seja visto por ninguém, que dirá d’Aquele que conhece o coração de cada pessoa e a quem nada se pode ocultar? Ou se pode crer que não vê porque o faz com tanto maior paciência quanto maior é sua sabedoria? Tema, pois o homem consagrado desagradar Aquele , para que não queira agradar pecaminosamente uma mulher. E para que não deseje olhar com malícia uma mulher, pense que o Senhor tudo vê. Pois é por isto que se nos recomenda o temor, segundo está escrito: 'Abominável é diante do Senhor aquele que fixa o olhar'".

                - Devo ainda alguma obrigação com esta paróquia, D. Wilma? Imagino que esteja vindo alguém para substituir-me. Se não sou mais necessário, gostaria de ir pra casa e ler com calma todos estes documentos e ponderar sobre o que fazer neste futuro breve.
                Ela assentiu com os olhos marejados, apertou forte uma das minhas mãos e deixou dentro um pingente de Nossa Senhora das Dores, sua devoção. Depois virou-se bruscamente e imagino ter-se deliciado numa risada silenciosa e comprida. Deixei a clesma sobre a mesa, junto com a medalha que me enojava, andei calmamente o corredor central da igreja e, já à porta para sair, encarei tudo. As imagens pareciam desafiar-me e enfrentei-as: virei-me, bastante ereto e saí simplesmente, sem me ajoelhar, sem pedir que algo dali me acompanhasse pela rua. Tentaria ser outra pessoa.



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