O dia amanhecera cinzento como de costume.
Era ainda muito cedo quando
Mirella fechou a porta de seu apartamento e desceu as escadas do prédio
carregando sua mala e toda sua expectativa, indo em direção a um passado
indecifrado.
Precisaria pegar o metrô até a
Rodoviária. Faria sua viagem de ônibus, já que perdera seu carro por conta das
dívidas que fizera em seu último relacionamento. Luis era um homem muito
persuasivo.
Naquela hora da manhã, as
estações mais pareciam formigueiros. As pessoas se acotovelavam e empurravam em
busca de espaço. Acostumara-se a este inferno matinal desde que passara a fazer
seu percurso para o trabalho usando o metrô.
A tempo, Mirella chegou à rodoviária.
O ônibus seguia em velocidade
permanente. Mirella observava pela
janela o caminho que, feito tapete vermelho em grandes estreias, se desenrolava
diante de seus olhos. A faixa amarela que dividia a estrada avançava a cada
quilometragem hipnotizando-a. O pensamento não acompanhava aquela movimentação
e era mais rápido que a sua vontade. Impossível fazer aquela viagem sem reviver
lembranças do passado, reminiscências que ela sabia o quanto feriam-na por
dentro.
Lágrimas irreprimíveis
escorriam pela face de Mirella. Estava sozinha naquela empreitada.
Queria paralisar seus
pensamentos.
Nessas horas, valeriam aqueles cursos de meditação que tanto procrastinara Lembrou-se então do Frei, um rapaz tão jovem e tão cheio de sabedoria, que morava em seu prédio, e daquele encontro casual onde velas e fósforos foram motivo para longos papos. Ele lhe falara de sentimentos e experiências que tocaram profundamente suas mágoas. O que ficou guardado no inconsciente de Mirella, agora, diante daquela viagem com promessas catárticas, parecia querer revelar-se.
Nessas horas, valeriam aqueles cursos de meditação que tanto procrastinara Lembrou-se então do Frei, um rapaz tão jovem e tão cheio de sabedoria, que morava em seu prédio, e daquele encontro casual onde velas e fósforos foram motivo para longos papos. Ele lhe falara de sentimentos e experiências que tocaram profundamente suas mágoas. O que ficou guardado no inconsciente de Mirella, agora, diante daquela viagem com promessas catárticas, parecia querer revelar-se.
Precisava relaxar.
Era um longo percurso e ainda
tinha muito chão para rodar.
Conseguiu ler um pouco durante
o dia. O ônibus faria uma única parada para o almoço e depois seguiria viagem
noite adentro. Seria uma noite interminável para ela!
Acabou por adormecer.
Acordou várias vezes durante a
noite por causa dos pesadelos. A última vez que tentou dormir, o céu aclareava
em cores douradas e alaranjadas no horizonte.
O ônibus adentrou a cidadezinha
logo ao amanhecer.
As ruas secas e empoeiradas
já não existiam mais. Para surpresa de Mirella, havia no lugar da enlameada rua
principal, paralelepípedos, calçadas e uma pequena alameda com arvorezinhas
recheadas de flores amarelas e postes de luz de cimento, e não mais os de
madeira podre que ameaçavam cair a qualquer momento. Definitivamente aquela não era
a cidade que Mirella cresceu e para qual deu as costas. É bem verdade que
alguns comércios ainda estavam intactos. Mas percebia-se o progresso alcançado
e bem chegado àquela população.
Houve um pequeno sopro de contentamento.
Quem
sabe até de esperança.
O ar estava diferente. Mirella
estava diferente. Tudo estava diferente
Ninguém a esperava na
rodoviária.
Preferiu não deixar marcada data de chegada.
Preferiu não deixar marcada data de chegada.
Conseguiu um táxi para chegar
ao sítio onde seus pais moravam. Um lugarzinho simples e bucólico, afastado do
centro, onde criavam galinhas, patos e cultivavam uma pequena horta no fundo do
quintal. Desceu do táxi e não precisou de muito tempo para que as lembranças da
infância renascessem em sua memória; o cheiro de cocô dos patos e das galinhas
era inconfundível e, para ela, insuportável.
Sentiu ânsia de vômito.
Passado o primeiro impacto, foi
logo entrando pela porta da frente que vivia aberta. Percebeu que, apesar do
progresso ocorrido na cidade, o mesmo não acontecera ali. Tudo estava exatamente
igual desde a última vez que olhou para aquelas paredes. Uma casa de tijolos
aparentes, caiada e, apesar de pobre, extremamente bem cuidada. O cheirinho do
café feito no coador de pano parecia diferenciado. Foi absorvida e abduzida
pelo mesmo. Deixou a mala na sala e foi direto para a cozinha, onde avistou uma
senhorinha mediana muito franzina, com um coque preso no alto da cabeça, uma
das mãos segurando uma chaleira de alumínio que jorrava água fervente no coador
de café apoiado sobre a pia. A outra mão segurava a cintura, formando uma asa em
conformidade com o bule.
Mirella ficou por alguns
segundos observando a cena, só despertando do transe quando ouviu um grito. Sua
mãe, ao se virar, assustou-se com a presença dela e acabou por deixar cair o bule
no chão, derramando o café.
Os olhares se cruzaram por
segundos e Dona Miriane, sem saber ao certo como reagir, enxugou algumas gotas
de lágrimas que escaparam de seus olhos limpando-os com as costas das mãos,
tentando disfarçar a emoção. Baixando a cabeça mais por humildade que vergonha,
logo pôs-se a pegar um pano para limpar o descuido. Mirella segurou a mão de
sua mãe e, sem precisar dizer qualquer palavra, abraçou-a carinhosamente. Não
imaginava o quanto ela havia envelhecido e o quanto aquela vida a maltratara.
Apiedou-se e, mais do que esquecer um passado de rancores e palavras duras, brotou em seu coração um amor incondicional que, ali mesmo, naquela cidade, um
dia, matara por questões mesquinhas e infantis.
"O tempo não só cura, mas também reconcilia.”(Mih Baldi)