4 de novembro de 2013

[201] Sexto Episódio: Religação

 
 ambiente escuro do quarto feito de oratório era adentrado pela luz amarelada dos postes que, mutilando-se no desenho miúdo da cortina de renda, projetava nas paredes e no corpo ajoelhado um intercalar disforme de luz e escuridão, a batalha cósmica entre algum tipo insondável de Sumo Bem e seu oposto. Hermínia me vinha à mente agora não mais em forma de desejo, mas como um arrependimento. Em tom solene, minha voz pronunciava firmemente o Ato de Contrição, meu espírito curvava-se para receber a remissão dos meus pecados:

– Senhor Jesus Cristo,
Deus e homem verdadeiro,
Criador e Redentor meu,
por serdes Vós Quem sois...

Há duas quadras do edifício, um corpo ensanguentado grunhia entre o líquido escuro que vazava dos sacos de lixo. Do lado da cabeça de cabelos ralos e dourados, uma bolsa sem carteira e celular. Antipenúltima... penúltima... última respiração.

– ...sumamente bom
e digno de ser amado
sobre todas as coisas,
e porque Vos amo e estimo...

Ao leste, o homem abria o zíper de sua calça enquanto uma mulher de meia idade se abaixava com algum esforço à sua frente, tentando movimentar-se dentro de um vestido preto, caricaturalmente apertado, que lhe estrangulava.

– ...pesa-me, Senhor,
de todo o meu coração,
de Vos ter ofendido;
pesa-me também
por perdido o céu
e merecido o inferno...

Em uma das ruelas em que ligam à avenida central, um bastão improvisado com madeira de móveis achada no lixo movia-se rapidamente e acertava a cabeça de um morador de rua, que dormia enrolado em pedaços de papelão. Dois homens corpulentos corriam com um sorriso de satisfação em seus rostos.

– ...e proponho firmemente,
ajudado com o auxílio
da vossa divina graça,
emendar-me
e nunca mais vos tornar a ofender...

A guria abordava um carro parado no sinal perto da praça de São Marcos, brilhava como uma estrela triste no meio da madrugada da Cidade em seu vestido de paetê que lhe deixava o corpo bonito, com suas coxas compridas à mostra. A guria tinha outra guria para cuidar. Entrava nos carros a trabalho, cobrava ‘vinte pratas’.
                       
– ...e espero alcançar o perdão
das minhas culpas,
pela vossa infinita misericórdia.
Amém.




Em um ou outro canto da Cidade, todos se sentiam como vítimas potenciais de uma dinâmica humana que lhes fugira do domínio e ia se personificando cada vez mais claramente no grande e complexo corpo de cimento, de metal, de rodas de borracha e de gente sem rosto. As lutas particulares são as mais diversas e aparecem na forma de algum tipo de violência. Contudo, em milhares daqueles cubículos dos prédios residenciais era travada uma luta menos aparente contra a solidão. Balela para alguns, eu entendo, mas algo cujo resultado para outros é capaz de os definir como santos ou condenados. Por quanto tempo consegue-se ficar puro? O mal é como um veneno que vai pela articulação do cotidiano; uma vez que já foi absorvido e faz parte de seu funcionamento, não é visto mais como mal, é apenas coisa da vida.

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