9 de outubro de 2013

[201] Quinto Episódio: Mãos

"E, se sua mão direita te leva a pecar, corte-a e lance-a fora. 
É melhor perder uma parte do seu corpo do que ir ele todo para o inferno.”

Mt 5, 30

s encontros com Hermínia tornaram-se frequentes. Havia entre nós uma espécie de contrato tácito e eu sabia, sem necessidade de nenhuma verbalização, que eu poderia encontrá-la sempre sentada à mesma mesa onde nos conhecemos, nas noites de domingo. Ela sempre estava lá, no meio daquele emaranhado de ruas minguadas, envolta na névoa rala que emanava de muitas bocas e segura entre o tiroteio de olhares que se lançam a cada minuto. Era como um exemplar de boa adaptação àquele ambiente, sempre segura, leve e precisa. 
               – Otávio – sempre falava meu nome entre um sorriso que zombar dos meus receios ao encontrá-la sob essas circunstâncias – Já pedi seu vinho. Estava certa de que nos encontraríamos hoje.
         
           Nosso contato havia se tornado um misto de prazer e incômodo. Na sua parte boa, eu podia apreciar Hermínia, olhá-la bem de perto enquanto seus olhos estavam ocupados demais em dar conta de toda movimentação ao nosso redor. Na parte ruim, sentia que não lhe tinha mais o que falar; já tinha esgotado algumas histórias divertidas do seminário e o ofício de um clérigo, convenhamos, não costuma despertar um interesse mais proeminente nesses tipos mais urbanos. Em silêncio consumia-se a maior parte do tempo que compartilhávamos.
               – Veja só, Otávio. Há algumas semanas, quando nos conhecemos, estávamos os dois fantasiados, lembra-se?
              – Lembro-me de sua fantasia; eu, porém, vim do jeito que aqui estou.
              – Não seja hipócrita. Ou você é mesmo daqueles que se propõe a fazer contanto que nunca se fale sobre o que foi feito? Esperava mais de você...
               
           Senti minha face ficar corada e duas gotas de suor me escorreram uma por cada lado do rosto. Engoli a seco. Não sabia que esta mulher tinha também o poder de me fazer sentir como um menino com quem a mãe ralha ao descobrir-lhe um segredo travesso.
             – Se quer ouvir da minha boca que hoje é a primeira vez que venho te ver sem estar usando clesma, está dito – tomei coragem e longos goles de vinho – E fica dito também que a retirei por sentir no meu pescoço o incômodo de uma coleira. E, de brinde, ainda me livro daqueles que me olhavam como uma pessoa exótica. Desapontei-a? A graça de minha companhia estava justamente nisso?
             – Oh, tão poucas vezes conversamos e este seu tom de drama já me incomoda. Mas, se é inseguro a este ponto, saiba que ainda o aprecio. Talvez até mais. E, de fato, aquilo parece mesmo uma coleira. Não lhe falei antes para não influenciar a uma retirada precoce.

     Algumas horas depois estávamos na pequena sala do meu apartamento. O vinho me fazia despreocupado com qualquer possível conseqüência de tê-la levado para um pernoite, mas ela – e assim nunca lhe tinha visto – encolhia-se na poltrona enquanto eu providenciava que meu pequeno oratório lhe servisse de quarto para dormir. 
               – Um padre que traz uma mulher pro seu apartamento e é amigo de um casal gay... – e tomava um certo cuidado pra falar baixo.
                – Casal gay, Hermínia?
                – Sim, não conhece os dois rapazes que vieram no elevador? Pois então.
               –  Na verdade, conheço um só. Encontrei-o na capela um dia, ele ainda não se vira muito bem na Cidade. Ajudei-o a voltar pra cá. Mas não duvido que sejam gays, duvido que sejam um casal. Aquele mais robusto tinha um olhar muito frio, sabe?
                – Sim, percebi. Foi uma subida de elevador das mais tensas – e dirigia-se ao oratório, sinalizando que já se ia deitar – Um padre e uma mulher, um rapaz e outro rapaz, todos se olhando de soslaio, todos secretamente julgando. Isso me dá sono. Boa noite.




          Deitei-me com um sentimento de decepção. Não fui capaz de rezar, sequer fui capaz de dormir antes de algumas horas em que a imagem de Hermínia insistia em se projetar sobre minha imaginação. Já devia ser quase manhã quando ouvi um barulho de porta batendo e resolvi verificar. Ela havia deixado o apartamento. Em cima da cama improvisada, um bilhete:
               

                “Otávio,
                não pude dormir direito com esse homem pendurado sangrando e tive a sensação de aquele que segura o próprio coração estava olhando pra mim.”



                Senti raiva. Tê-la em meu apartamento daquele modo era o mesmo que não tê-la. E por mais que eu não pudesse admitir nem mesmo pra mim, tudo que eu desejei aquela noite foi tocá-la. A raiva era a erupção desse desejo tão intenso. Enquanto minha mão esquerda amassava o maldito bilhete e a cabeça imaginava cada milímetro do corpo feminino muito branco e o tato em cada pelo seu, a mão direita me saciava o desejo febril em movimentos fortes que me faziam suar.

                Tive então a sensação de que agora todas as imagens do oratório olhavam pra mim e sentia-me profundamente envergonhado. A mesma mão que ergueria a hóstia algumas horas adiante estava suja, meu corpo jazia patético. No verso do bilhete amassado, descobri o telefone de Hermínia. No fim, a noite de fato mudara tudo: dali em diante, nada mais poderia ser imputado ao acaso, tudo dependeria de um ato inegavelmente volitivo.

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