26 de outubro de 2013

[502] De volta ao Brasil

Um vazio... Isso. Uma sensação de total abandono.

Solidão ceciliana. Desejo oswaldiano de transformação e ruptura com um passado ilusório e idealizado. Uma antropofagia educacional necessária à catarse dessa angústia que toma conta de tamanha desolação. Alma saudosa da família que se foi. Corpo cansado de tantas caminhadas sem rumo, aspirações rompidas por várias decepções.

E tudo que pensei encontrar bem, parecia-me pior do que quando fui. Um nada aconteceu diante de todas as reivindicações de minha classe. Penso que a sociedade não merece os profissionais sérios que tem. Aqueles que lutam por condições melhores de trabalho, exigem o mínimo necessário, um resultado mais eficaz de suas ações em sala de aula.

Nós, professores, brigamos por recursos básicos e essenciais a uma educação de excelência: conforto, segurança, material didático-pedagógico de qualidade que atenda à diversificação das atividades e ao desenvolvimento de uma tecnologia educativa eficiente. Consequentemente, deixamos claro o real motivo de nossa luta: uma ação efetiva do que determinam as leis educacionais e que fica restrito a uma elite que paga por um serviço que deveria ser obrigação do governo. Educação para todos. Frase mote de um discurso demagógico e repetitivo. Frase hipócrita que não engana mais nem mesmo aos menos favorecidos.

Para os professores, planos de atualização, reciclagens constantes com orientação segura, estudos voltados para o aprimoramento de habilidades e competências que venham engrandecer o pensar e o fazer pedagógico, incentivando os alunos a busca de novas oportunidades, propiciando-lhes informações e conhecimentos para se tornarem protagonistas de suas próprias aprendizagens.

Amigos descrentes voltaram às suas turmas insatisfeitos, revoltados com a violência que sofreram, com a passividade do governo e a revolta da população – acreditem! – essa se volta contra nós e, nós, apenas pedimos o que nos é direito... Essa nos coloca numa posição de vândalos, irresponsáveis que perderam um ano e atrasaram seus filhos, sobrinhos e netos. Como se o atraso real fosse esse.

A sujeira do apartamento fechado há meses não está pior do que a imundície social que encontro aqui. Massacres e manifestações perdidas, badernas desconexas com os desejos de quem repugna a covardia, o embate corporal, o desrespeito. Um dane-se geral. Mortes e mais mortes. Por todos os lados gente que chora suas frustrações, gente que brinca com o sofrimento dos outros, gente que ri de felicidades clandestinas.

Desolação policarpeana, entretanto crença condoreira de que a mudança vem com o incômodo e com a exposição daqueles que põem suas caras à tapa. Diante de tudo, a necessidade de colocar em dia as minhas obrigações, assumir as minhas funções. Afinal acabou a greve, voltamos ao trabalho, mas não deixamos de querer, aspirar, pensar em um fazer acontecer. Como é difícil recomeçar assim!

Em meio a essa turbulência, uma tristeza, uma saudade da criança que fui e que deixei em Portugal nos braços de Paolo que chora a minha falta. A ausência de minha mãe, de meu vô, de minha vó tornam-nos órfãos com um vácuo no corações cansados.

Portugal... Eu não poderia ficar com Paolo naquele lugar que me traz tantas lembranças e me sufoca, a ponto de me trazer de volta a asma que um dia tive... Gastrite... Pânico... Uma vontade de voltar ao ovo e me permitir ficar no casulo cinza de meu ap. Um afastamento, uma alienação, um comportamento de refugiada, escondida de tudo e de todos, tão necessário nesse momento de reestruturação.

Quem um dia teve tantos amores, hoje se encontra perdidamente desligada da vida. Nada me restou a não ser esse padrasto que não quis abandonar o barco e ficar à deriva como eu. Paolo se entrega às lembranças e, novo ainda, não segue sua vida. Sozinho, ainda sobrevive da memória, castelos de areia, recordações de uma família que construiu e que se foi nas rajadas das últimas tempestades que destroçaram sua alma e seus anseios.

Tanto Paolo como eu precisamos desse luto, encontrar forças para sair dessa condição de vítimas e recriar situações de conforto e de alegrias novamente. Penso ajudá-lo, mesmo distante, e procurar meu pai biológico, Daniel, de quem quase nada sei, a não ser sua profissão de jornalista atuante, amante da verdade e da divulgação de verdades, levando aos seus leitores e ouvintes informação real como forma de escolhas, é agora a minha meta.

Na claridade vinda da rua, encolhida em meu canto, choro, choro muito até esgotar a dor e transformá-la em vontade de viver.

Assim como o prédio, cinza está minha vida, meu sentir, minhas expectativas em relação ao futuro. Mas sei que depois dessa amargura, o sol vai me trazer a solução e a esperança. Jargão? Eu sei. Mas afinal para que servem as expressões clichês senão para ressaltar nostalgias, além da desvalorização linguística, assumidamente responsável por uma clientela de reprodutores de ideologias aprendidas nos bancos acadêmicos. É contra isso que luto todos os dias, apesar de remar contra marés de tormentos nas escolas que vivem de clientes, que querem saber do que pagam para receberem conhecimento como mercadorias adquiridas em bancas de mercadinhos e feiras.

Conversava com um amigo e ele me criticava quanto a minha forma de encarar a vida sem vida, sem soluções, reclamava de minha amargura e me fazia repensar quase tudo. Isso, um pouco antes de meu retorno a Portugal. Tentei me defender, mas eram indefensáveis todos os seus argumentos. Eu me encontrava em uma zona de conforto tal, conduziam-me o marasmo e a acomodação diante das coisas, isso me deixavam sem respostas para o que só dependia de mim.

E onde estava aquela Íris que fui um dia? A Íris alegre, aquela que acreditava em conseguir ser o que queria, que saiu de sua casa e se entregou às buscas de mais alegrias? A filha cigana da cigana Shakira que exalava vida por onde passava, a neta da judia Eloah que me fazia ser admiradora da poesia, fazia-me crítica e responsável pelos meu atos, autônoma o suficiente para ser o que sou hoje. Meu vô Samuel que me tornou essa eterna contadora de histórias e mulher das palavras rebeldes, das palavras fortes, sedutoramente necessárias a quem precisa aprender a se defender desde cedo de gentes e situações manipuladoras.

Da janela vejo pessoas entrando e saindo do edifício. Quem seriam essas pessoas? Vivemos em um mesmo lugar, separados por paredes e andares de concreto e não sabemos mais do que o som de seus bons dias, boas tardes e boas noites, educados, de quem mal se olha e se vê, mesmo ocupando quase o mesmo espaço.

Bebo água, escuto um latido de cão, o elevador que sobe e desce. Um silêncio prolongado parece compartilhar desse meu dia de lágrimas e recordações. Banho! Isso! Um banho seria capaz de me fazer sentir a vida através da água quente que lavaria esse mofo mórbido azevediano. Respiro profundamente e reajo diante da vida que se apresenta no reflexo da janela. Vou sobreviver – risos –, afinal, fui educada por vencedores e vou saber vencer como eles.

A herança? Ah! A herança que fui buscar? Que herança que nada... A maior de todas trouxe comigo: a pessoa que sou, minhas crenças, meus valores, minha garra de fazer e transformar... Algumas roupas, poucas, algumas obras de arte da vovó, uma pequena parcela de dinheiro que se encontrava na poupança já em meu nome.

A Íris que aprendeu a ser humana e humanitária, fraterna, solidária, guerreira... Enfrentou a barra e foi a Portugal. Reviveu uma vida e matou muitas outras que permaneciam intactas dentro da alma. A Íris que sente na pele a perda e engasga com a saudade... A Íris que com certeza amanhã estará bem. Acordará inteira, caminhará pelas redondezas, continuará a arrumar de seu jeitinho aquele recanto de acolhimento seguro do ser que se faz presente nas pequenas coisas, nas pequenas conquistas, que se encontra aberta a novos conhecimentos, a uma nova vida.

 A chácara e a marcenaria, a terra dos meus avós estão à venda. Por enquanto Paolo está por ali... Mesmo na cidade, trabalhando na padaria do seu amigo, sei que zelará pelo Recanto das Garças. Esperemos pelo o que há por vir. 

Enquanto eclodem os problemas lá fora, fico, eu e Paulinho da Viola, reestruturando-me para um novo amanhã....

http://www.youtube.com/watch?v=o5qYIh1BBLI





25 de outubro de 2013

[205] Episódio Piloto: O reencontro

 
Acendi um cigarro de filtro amarelo e dei uma tragada profunda. Limpei as lágrimas restantes que me embaçavam as vistas e segui para a casa de Cátia, uma ex-namorada, uma das poucas que tive. Nosso relacionamento até que era bacana, falávamos com certa frequência pelas redes sociais. Eu gostava de estar com ela, me sentia querido, seguro, como em poucas situações eu pude me sentir. E eu precisava dela agora. Bati à porta do sobrado em que ela morava, num bairro próximo ao centro. Ela me recebeu com surpresa.

– Márcio? – surpreendeu-se ao abrir. Era uma mulata de 1,65m, mais ou menos, seios pequenos – muito pequenos – e coxas grossas e bunda arredondada. Os cabelos eram espessos e encaracolados, de cachos bem definidos pelo uso de cosméticos, os olhos, profundamente negros (que intimidavam), e um sorriso debochado em lábios finos e curtos.

– Sou adotado... – respondi cabisbaixo, evitando encarar seu olhar. Embora nos falássemos frequentemente, não nos víamos pessoalmente há quase um ano. Dizer minha condição foi a única coisa que pensei na hora, quando eu podia ter dito qualquer outra: “Posso passar a noite aqui?”, “Não me convida a entrar?”, “Oi! Que saudades...”.

– Como é que é? – indagou estupefata.

– Posso te contar tudo, se me deixar entrar. Está acompanhada? – perguntei, finalmente encarando-a. Meus olhos marejavam novamente.

– Claro, claro, entre logo. – respondeu franqueando a passagem para que eu entrasse. – Não, eu não estou com ninguém aqui... você sabe disso.

– Sei do quê? Eu descobri que sei muito pouca coisa... – disse ao parar no meio da sala e correr o olhar. – É... as coisas não mudaram muito por aqui...

– Não estou namorando. – murmurou ao se aproximar ternamente. – Você podia ter vindo há mais tempo...

– Foi você que me mandou embora, esqueceu? A minha ideia era não voltar mais aqui... – retruquei, ignorando a parte sobre seu relacionamento, quando fui interrompido.

– Mas voltou. Saudades?

– Senti... muitas... mas não foi por isso que vim aqui. Saí de casa...

– Quer dizer então que... o que você disse mesmo? Adotado? – perguntou franzindo o cenho.

– Você não sabia? – perguntei sentando ao sofá.

– É claro que não! – respondeu de pronto, mas não acreditei muito em sua sinceridade. Não sou muito de acreditar nas coisas e confesso que devo ser uma pessoa muito difícil de conviver. Foi isso que ela me disse quando me deixou. “Você é muito difícil de conviver... desconfiado, ciumento, encrenca por pouca coisa”, “É muito difícil para mim, poxa, eu gosto de você... mas não dá mais”. Mas eu sempre achei que havia outro cara nessa história.

– Fiquei sabendo hoje. Há uma hora e meia, mais ou menos... – disse friamente. Cátia sentou ao meu lado, com uma perna passada por baixo da outra, alisando meus cabelos.

– Caramba... que chato... Como é que foi isso? – perguntou. O cheiro de seu perfume começava a me excitar.

– Vou te contar... mas não agora. Estou precisando de um lugar para morar...

– Quer morar comigo? – indagou sorridente.

– Depois de um ano afastado? Será? – respondi sorrindo e cruzei os braços.

– Só depende de você...

– Nem estamos juntos...

– Isso também só depende de você... – disse e me beijou. Correspondi a seus beijos, um tanto contrariado, a princípio, não era isso que eu queria. Mas me era conveniente e continuei. Foi tudo muito rápido, meio animalesco, coisa de instinto. Em meia hora já tínhamos gozado, abraçados e ofegantes no sofá.

– Você tem bagulho aí? – perguntei enquanto arfava o ar, olhando para o infinito.

– Você tinha que estragar tudo, não é? – esbravejou ao levantar-se irritada.

– Eu deixei tudo na minha... digo... casa da minha... quero dizer, da Martha, e estou sem dinheiro aqui... – tentei me explicar, completamente atordoado.

– Eu já parei com isso faz tempo. Você não disse que ia parar, que tudo ia mudar e coisa e tal? – disse gesticulando de forma debochada, enquanto vestia a camiseta e a calcinha.

– Porra! Você acha que isso é fácil? Olhe minha vida como está. Me diz, como é que eu vou parar? – balbuciei me esticando para pegar o maço de cigarros na minha calça, próxima ao sofá. Bati a carteira e acendi um.

– E eu não parei? Isso é questão de força de vontade. Se você quer, você consegue... – disse ao sentar-se ao meu lado.

– Não é bem assim e você sabe muito bem disso. Agora chega de me dar esporro, porque eu não vim aqui para isso... – reclamei e dei uma longa tragada.

– Veio para trepar e fumar um bagulho...

– Tem como você dar um tempo? Você já disse o que queria, eu já sei, tenho que parar de me drogar, prometi e não cumpri, você me largou por causa disso e porque tinha outro...

– Eu não estava te chifrando, se é o que quer saber, seu filho da puta... – disse afundando o rosto entre as mãos, visivelmente chateada.

– É... minha mãe é uma puta mesmo... aliás, as duas... – desabafei e levantei-me, ainda pelado. Deixei-a sem graça.

– Err... me perdoe Marcinho... eu não... – desculpou-se, constrangida.

– Eu sei, você não queria me ofender. Eu não sou tão estúpido assim... – afirmei, ao dar outra tragada. – Você não tem um cinzeiro?

– Eu não fumo mais, Márcio. – disse ela se aproximando. – Não vai me contar o que aconteceu?

– Ainda não. – respondi secamente. Fui até à janela e joguei a binga fora. – Preciso passar a noite aqui, não tenho para onde ir... É só por hoje... Você me ajuda a encontrar alguma coisa para alugar?

– É claro que ajudo! Por mim, você fica quanto tempo quiser... – disse e me abraçou. Talvez ela fosse realmente apaixonada por mim, eu é que era um babaca mesmo, cheio de problemas. Nem eu gostava de estar junto comigo. Sendo assim, quem gostaria? Podia ser o caso de ela estar sentindo pena de mim. Odeio que sintam pena de mim. Sinto-me ridículo, vulnerável, humilhado... E mulher tem dessas coisas, possivelmente seja o espírito materno, a necessidade de cuidar de alguém frágil.

– Obrigado... – agradeci, entre os dentes e uma lágrima escorreu, sendo colhida rapidamente pelo indicador de Cátia.

– Vamos comer alguma coisa? Já está ficando um pouco tarde... – convidou carinhosamente, a fim de me distrair de meus problemas. Comemos lasanha, daquelas que vendem congeladas, aquela era uma das melhores marcas.

– O padrão melhorou, hein? – comentei com bom humor ao dar uma garfada.

– Estou trabalhando na casa de um bacana. Conhece? O Dr. Lobosco, aquele advogado... – perguntou afastando a comida para o canto da boca.

– O polêmico Dr. Bernardo Lobosco?

– Ele mesmo... – respondeu, o olhar parecia esperar minha reação, mas continuou. – E você? O que anda fazendo?

– Aquele mesmo serviço de design, ilustrações, logomarcas... dá para tirar um bom trocado. E não tenho ninguém para me dar ordens, o que é mais importante.

– Você não muda nunca...

– Mudar causa desconforto. Mudar para quê?

– E por falar nisso, vou buscar o notebook... – disse Cátia ao se levantar, mastigando, para pegar o computador. Abriu-o sobre a mesa e ligou.

– Caramba... esse cara paga bem mesmo. A geração mais moderna, wi-fi... – comentei com admiração pela sua prosperidade.

– O Dr. Lobosco vive na mídia pelos casos que ele pega, pelos artifícios que ele usa, mas não tem muito apego com dinheiro. É pródigo, gasta com o que pode e o que não pode, vive a esbanjar... – explicou com a boca cheia.

– Quando ele for mudar a logo do escritório, me avisa, está bem? – adverti sorrindo. Só a Cátia mesmo para me fazer isso.

– Olha aqui... achei um apartamento lá no centro, parece bacana para você: dois quartos, sala, cozinha, banheiro... – disse virando o aparelho para que eu pudesse ver melhor. – Até que é bonitinho. Veja, tem até a foto externa do prédio...

– Cinza demais, você não achou? – observei, depositando o talher no prato e afastando-o para frente.

– E o que não é cinza demais nessa cidade? – disse abocanhando a última garfada. – Não quer me contar mesmo sobre o que aconteceu? Vai ser bom para você... – persuadia-me ela.

– Você é curiosa, hein? – debochei com um esgar de sorriso, tentando disfarçar minha inquietude. Baixei o olhar, suspirei e continuei. – Não quer fazer um cafezinho para a gente?

20 de outubro de 2013

[403] Episódio 12: Acertando as Contas...

A IMPOSSÍVEL PARTIDA

(Vinícius de Moraes)

Rio de Janeiro , 1935

Como poder-te penetrar, ó noite erma, se os meus olhos cegaram nas luzes da cidade
E se o sangue que corre no meu corpo ficou branco ao contato da carne indesejada?...
Como poder viver misteriosamente os teus recônditos sentidos
Se os meus sentidos foram murchando como vão murchando as rosas colhidas
E se a minha inquietação iria temer a tua eloquência silenciosa?...
Eu sonhei!... Sonhei cidades desaparecidas nos desertos pálidos
Sonhei civilizações mortas na contemplação imutável
Os rios mortos... as sombras mortas... as vozes mortas...
...o homem parado, envolto em branco sobre a areia branca e a quietude na face...
Como poder rasgar, noite, o véu constelado do teu mistério
Se a minha tez é branca e se no meu coração não mais existem os nervos calmos
Que sustentavam os braços dos Incas horas inteiras no êxtase da tua visão?...
Eu sonhei!... Sonhei mundos passando como pássaros
Luzes voando ao vento como folhas
Nuvens como vagas afogando luas adolescentes...
Sons... o último suspiro dos condenados vagando em busca de vida...
O frêmito lúgubre dos corpos penados girando no espaço...
Imagens... a cor verde dos perfumes se desmanchando na essência das coisas...
As virgens das auroras dançando suspensas nas gazes da bruma
Soprando de manso na boca vermelha dos astros...
Como poder abrir no teu seio, oh noite erma, o pórtico sagrado do Grande Templo
Se eu estou preso ao passado como a criança ao colo materno
E se é preciso adormecer na lembrança boa antes que as mãos desconhecidas me arrebatem?...
Mirella fechou o livro de poesias. 

Em sua passagem pela cidade que crescera resgatara alguns pertences, entre eles, seus livros da adolescência.  Após sua chegada em casa, desarrumando a mala, Vinícius saltara-lhe aos olhos.

Abriu na página acima e identificou-se com o que leu.Seria coincidência? 

Estava cansada... deixaria para o dia seguinte seu acerto de contas com a vida...

9 de outubro de 2013

[201] Quinto Episódio: Mãos

"E, se sua mão direita te leva a pecar, corte-a e lance-a fora. 
É melhor perder uma parte do seu corpo do que ir ele todo para o inferno.”

Mt 5, 30

s encontros com Hermínia tornaram-se frequentes. Havia entre nós uma espécie de contrato tácito e eu sabia, sem necessidade de nenhuma verbalização, que eu poderia encontrá-la sempre sentada à mesma mesa onde nos conhecemos, nas noites de domingo. Ela sempre estava lá, no meio daquele emaranhado de ruas minguadas, envolta na névoa rala que emanava de muitas bocas e segura entre o tiroteio de olhares que se lançam a cada minuto. Era como um exemplar de boa adaptação àquele ambiente, sempre segura, leve e precisa. 
               – Otávio – sempre falava meu nome entre um sorriso que zombar dos meus receios ao encontrá-la sob essas circunstâncias – Já pedi seu vinho. Estava certa de que nos encontraríamos hoje.
         
           Nosso contato havia se tornado um misto de prazer e incômodo. Na sua parte boa, eu podia apreciar Hermínia, olhá-la bem de perto enquanto seus olhos estavam ocupados demais em dar conta de toda movimentação ao nosso redor. Na parte ruim, sentia que não lhe tinha mais o que falar; já tinha esgotado algumas histórias divertidas do seminário e o ofício de um clérigo, convenhamos, não costuma despertar um interesse mais proeminente nesses tipos mais urbanos. Em silêncio consumia-se a maior parte do tempo que compartilhávamos.
               – Veja só, Otávio. Há algumas semanas, quando nos conhecemos, estávamos os dois fantasiados, lembra-se?
              – Lembro-me de sua fantasia; eu, porém, vim do jeito que aqui estou.
              – Não seja hipócrita. Ou você é mesmo daqueles que se propõe a fazer contanto que nunca se fale sobre o que foi feito? Esperava mais de você...
               
           Senti minha face ficar corada e duas gotas de suor me escorreram uma por cada lado do rosto. Engoli a seco. Não sabia que esta mulher tinha também o poder de me fazer sentir como um menino com quem a mãe ralha ao descobrir-lhe um segredo travesso.
             – Se quer ouvir da minha boca que hoje é a primeira vez que venho te ver sem estar usando clesma, está dito – tomei coragem e longos goles de vinho – E fica dito também que a retirei por sentir no meu pescoço o incômodo de uma coleira. E, de brinde, ainda me livro daqueles que me olhavam como uma pessoa exótica. Desapontei-a? A graça de minha companhia estava justamente nisso?
             – Oh, tão poucas vezes conversamos e este seu tom de drama já me incomoda. Mas, se é inseguro a este ponto, saiba que ainda o aprecio. Talvez até mais. E, de fato, aquilo parece mesmo uma coleira. Não lhe falei antes para não influenciar a uma retirada precoce.

     Algumas horas depois estávamos na pequena sala do meu apartamento. O vinho me fazia despreocupado com qualquer possível conseqüência de tê-la levado para um pernoite, mas ela – e assim nunca lhe tinha visto – encolhia-se na poltrona enquanto eu providenciava que meu pequeno oratório lhe servisse de quarto para dormir. 
               – Um padre que traz uma mulher pro seu apartamento e é amigo de um casal gay... – e tomava um certo cuidado pra falar baixo.
                – Casal gay, Hermínia?
                – Sim, não conhece os dois rapazes que vieram no elevador? Pois então.
               –  Na verdade, conheço um só. Encontrei-o na capela um dia, ele ainda não se vira muito bem na Cidade. Ajudei-o a voltar pra cá. Mas não duvido que sejam gays, duvido que sejam um casal. Aquele mais robusto tinha um olhar muito frio, sabe?
                – Sim, percebi. Foi uma subida de elevador das mais tensas – e dirigia-se ao oratório, sinalizando que já se ia deitar – Um padre e uma mulher, um rapaz e outro rapaz, todos se olhando de soslaio, todos secretamente julgando. Isso me dá sono. Boa noite.




          Deitei-me com um sentimento de decepção. Não fui capaz de rezar, sequer fui capaz de dormir antes de algumas horas em que a imagem de Hermínia insistia em se projetar sobre minha imaginação. Já devia ser quase manhã quando ouvi um barulho de porta batendo e resolvi verificar. Ela havia deixado o apartamento. Em cima da cama improvisada, um bilhete:
               

                “Otávio,
                não pude dormir direito com esse homem pendurado sangrando e tive a sensação de aquele que segura o próprio coração estava olhando pra mim.”



                Senti raiva. Tê-la em meu apartamento daquele modo era o mesmo que não tê-la. E por mais que eu não pudesse admitir nem mesmo pra mim, tudo que eu desejei aquela noite foi tocá-la. A raiva era a erupção desse desejo tão intenso. Enquanto minha mão esquerda amassava o maldito bilhete e a cabeça imaginava cada milímetro do corpo feminino muito branco e o tato em cada pelo seu, a mão direita me saciava o desejo febril em movimentos fortes que me faziam suar.

                Tive então a sensação de que agora todas as imagens do oratório olhavam pra mim e sentia-me profundamente envergonhado. A mesma mão que ergueria a hóstia algumas horas adiante estava suja, meu corpo jazia patético. No verso do bilhete amassado, descobri o telefone de Hermínia. No fim, a noite de fato mudara tudo: dali em diante, nada mais poderia ser imputado ao acaso, tudo dependeria de um ato inegavelmente volitivo.