24 de setembro de 2013

[502] Em Portugal

Em Portugal



A alegria do reencontro, a nostalgia nas lembranças renascidas em cada canto da chácara, nos objetos - todos mantidos nos mesmos lugares -, nos cheiros adocicados das fronhas e dos lençóis, na paisagem vista da janela da sala onde vô Samuca ficava vislumbrando os colibris que vinham dançar, enquanto bebiam a água das flores de plástico penduradas na varanda. Tudo palpável aos olhos, resgatado pelos sentidos apurados da saudade.

O lado prático e real do inventário ficava relegado a segundo plano. Eu não queria saber de papéis, documentos mortos de vidas tão vivas ainda dentro de mim. Paolo, me observava sem palavras. Nada era mais acolhedor e carinhoso que aquele pai sentado na cadeira envelhecida, rangendo no ir e vir do balanço, ouvindo meus suspiros e ais de tristeza diante de tantas reminiscências. Uma mistura de Casimiro de Abreu e Drummond nos poemas sobre infância, abordados com uma mistura de inocência e realidade que me deixam com água na boca.

O telefone quebra o silêncio. Senhor José Manoel, advogado da família. Hora de uma verdade já esquecida: bens. Quem dera fossem mensagens além-Terra com notícias dos meus amores. Ri de mim mesma com tamanha bobagem.

- Sim, amanhã, as 10. Íris já está aqui faz três dias a esperar por tua ligação.

- Pai, diga ao senhor Manoel que resolva tudo o mais rápido possível, preciso voltar ao Brasil.

Saímos. Caminhamos em direção aos fundos da casa onde o poço, ainda ativo, pendurado o balde velho amarrado à corda, empretecidos pelo mofo, abandonados pelo tempo e pelo descuido. Ali, as flores coloriam as encostas e a horta de vó Eloah era motivo de, juntas, brincarmos entre os tomilhos, salsas, manjericões, alecrins... Ali aprendi o sabor das ervas e o amor à terra e ao trabalho doméstico, simples, diário.

Sentei-me ao seu lado no banco perto da grade do antigo galinheiro e, abraçados, choramos a ausência. Paolo, envelhecido, precisava de apoio, de companhia... O que eu faria para ajudá-lo? Difícil, abandoná-lo à sorte, deixá-lo sozinho naquele lugar quando tudo fosse resolvido.

- Pai, já pensou o que vai fazer quando eu voltar? Não quero vender a marcenaria nem a chácara, o senhor precisa de trabalho e de um canto para morar já que não pensa em deixar Portugal.

- Filha, se me deixares uma pequena morada, mesmo distante do campo, eu me arranjo. Não nesta casa. Podemos comprar algo mais simples, mais perto do comércio. Trabalhei na padaria de João. Lembra-te dele? Amigo do teu Wlad... – Percebeu meu espanto. – Perdoe-me, pequena, não deveria falar deste contigo, quanto mais neste momento de tantas emoções para ti.

- Não tem problema. Wladimir e eu nunca mais nos vimos desde a última separação. Foi um tempo difícil. Eu precisava estudar, queria crescer e virar mundo e ele só pensava na boemia e nas alegrias ciganas da estrada. Mas como está João? Me lembro dele quando estávamos ainda na escola, éramos tão crianças!

- Vida simples, querida. Assumiu a padaria do pai e casou-se. Tem dois pequenos. Dois e seis anos. Poderíamos fazer-lhes uma visita. O que acha?

- Como quiser. Amanhã depois da reunião do inventário, está bem pra você?

- Sim, estar contigo e te levar a passear sempre estará bem para mim...

Silenciamo-nos diante do descompasso de Paolo. Ele sabia que a minha volta ao Brasil seria uma separação inevitável porque me estabeleceria de vez aqui e ficaríamos separados, não para sempre, mas bem distantes por um tempo de não-sei-quando.

- Seria bom que você viesse comigo.

- Não daria certo morar perto de uma família que me desteta e me renegou ao casar com tua mãe.

- Sei lá, acho que Eva já o perdoou.

- Eva... Saudade de quando eu era pequeno e ela a cuidar de mim com tanto carinho. A diferença de idade a tornou um pouco minha mãe. Fiquei a chorar durante toda a cerimônia do casamento...

- Pai, por que não tenta um contato com ela. Telefona...

- Quem sabe um dia... Quem sabe um dia... – Saiu andando em direção à marcenaria.

[...]

Chegada a hora de resolvermos os problemas burocráticos de uma vida inteira de pessoas que tanto amei. Os bens materiais eram importantes, claro, hipocrisia dizer o contrário. Mas, no entanto, a situação óbvia da quebra de aliança entre mim e Paolo estava sendo prevista naquele instante em que o envelope se abria e o advogado lia o que já sabíamos. O que não havíamos pensado antes era na dor que sentiríamos depois que cada um fosse para seu lado e, se não nos víssemos mais, a eterna sensação do onde-quando-como, um do outro, o vazio do querer estar e o afastamento do não poder.

Terminada a reunião, a autorização da venda da chácara e da marcenaria. Os outros terrenos ao redor da chácara resolvemos deixar para depois. Não havia necessidade de vender tudo. Se Paolo não se acostumasse na cidadela onde João mora, poderia voltar e construir ali uma casinha para ele. Paolo é homem simples de campo... A cidade pode assustá-lo. A arte de trabalhar a madeira, fazer balanços, escorregas, cavalinhos, era herança da convivência com meu vô. Pouco tempo, mas suficiente para aprender a ser.

Chegando a casa, Paolo emudecido, cabisbaixo... Eu o abracei e, carinhosamente, comecei a beijá-lo e a rodá-lo pela sala. Brincamos. Eram cócegas e gargalhadas, corríamos pela sala como crianças até cairmos cansados no sofá. Um momento de alegria para espantar a certeza da separação breve, mas o fortalecimento de uma relação saudável que nos fazia família, uma família de dois, uma família que cabia num sofá, mas uma família.

A visita à casa de João ficara para depois.

Tempo de espera. Um tempo curto para organizar as coisas e reorganizar as ideias. Meu mundo se desfazia aos poucos para se reerguer em outras bandas. Logo estarei de volta. Meu apartamento simples no Edifício Cinza, minha escola, meus alunos, os amigos que me esperam, meus poemas...  minha marca em um lugar só meu.

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