10 de agosto de 2013

[505] Episódio 8: Na Rua, na chuva, na fazenda

                O sol de inverno brilhava no céu. Monstro colocava a cabeça para fora da janela, fazendo o pouco pêlo que tinha se balançar contra o vento. Meu pouco cabelo também se balançava enquanto eu o segurava em meu colo. Sara dirigia ao meu lado silenciosamente e Daniel lia gibis no banco de trás.
                Férias em família? Fora isso que Sara me propôs, e eu sugeri a fazenda dos meus avós, não tão distante da Cidade. Família entre aspas, afinal, ela e eu ainda acertávamos nossas arestas, e Daniel era apenas uma criança muito apegada a mim. Férias entre aspas, pois tínhamos apenas este fim de semana de folga. Segunda, Sara deveria voltar para seu emprego na livraria.
                Surpresas viriam de todos os lados e eu não sabia.
                Do meu lado, pelo menos, ela estava guardada num bolso da mochila. Numa pequena caixa de veludo. E ali dentro, muito mais que aquele tradicional símbolo de fidelidade: ali estava meu amor, minha fé num futuro ao lado de alguém que eu parecia predestinado a encontrar.
                Saímos da rodovia principal e entramos por uma estreita estrada de chão. Quanto mais a frente caminhávamos na estrada, mais minhas memórias da infância afloravam: a poeira subindo enquanto as crianças corriam e se escondiam atrás das árvores, o cheiro do almoço da vizinha, a lama nas botas, um velho tocando violão sentado em sua cadeira de balanço. Mas eu mudei e as coisas por ali mudaram também. Enquanto minha barba ia crescendo, carros antigos tomaram o lugar das carroças. Todos os casebres, por mais simples que fossem, tinham uma TV. Alguns tinham até computador, internet. A maioria das crianças tinha um celular nas mãos. Era impressionante o quanto tudo tinha mudado em tão pouco tempo. Era impressionante o quanto eu tinha mudado nesse pouco tempo em que me mudei dali.
                O carro chacoalhava bastante ao passar pela estrada irregular e as pedras no meio do caminho. As pedras... Minha vida cheia de altos e baixos. A vida de qualquer um. A mão que afaga é a mesma que apunhala e tudo muda em um piscar de olhos... Balancei a cabeça para afastar os pensamentos estranhos e vi que tínhamos chegado.
                — É aqui.
                Descemos do carro. Meu avô nos esperava a porta, com um largo sorriso de quem não vê o neto há tempos. Nós nos abraçamos até perdermos a noção do tempo. Seu Tobias era um homem fantástico. Era como um segundo pai para mim. Se não fosse ele e minha avó, essa mudança radical nos últimos quatro anos não teria acontecido comigo. Hoje eu não seria um programador com aspirações à escrita. Eu não saberia viver sozinho.
                Ao ver Sara, no entanto, seu sorriso azedou. Foi como um flash, uma questão de segundos, o suficiente para eu perceber. Logo depois, num sorriso quase teatral, a cumprimentou. Sara, por outro lado, parecia mais natural, mas também nem tão confortável. Apresentei-os. Peguei Daniel no colo e o incluí nos cumprimentos. Meu avô nos convidou a entrar na casinha simples, porém entulhada de móveis que eu conhecia muito bem.
                A minha primeira reação foi perguntar por dona Inês, minha avó. A mulher mais generosa e a melhor cozinheira que eu já conheci na minha vida. Os olhos do meu avô marejaram ao tocar no nome dela. Me disse que ela estava piorando, e ele simplesmente não sabia o que fazer...
                Quando saí da fazenda, há quatro anos, minha avó tinha acabado de ser diagnosticada com Alzheimer. Lembro-me que na época, eu pensei: “Que estranho essa vida. Passamos anos tentando esquecer muitas coisas, e quando nosso corpo se encarrega de fazer isso por ele mesmo – esquecer tudo –  nós odiamos, queremos fugir. Não seria melhor começar tudo de novo? Viver cada dia como se o anterior não tivesse acontecido?”
                Alguns instantes depois, dona Inês irrompe pela porta que divide a sala da cozinha. Viu nós quatro sentados no sofá puído coberto com lençóis igualmente surrados e nos encarou por alguns instantes, como se analisasse a situação. Olhei fixamente para ele e foi aí que eu entendi: o terror não é para quem esquece. É para quem não é lembrado. A angústia de cada segundo que ela refletia fazia meu coração se chocar contra o meu peito de maneira tão forte que eu sentia que se ela demorasse mais alguns segundos o mundo ao meu redor se dissolveria. Sara e Daniel olhavam para ela, os dois confusos sem saber o que fazer. Monstro, alheio a tudo, dormia num canto da sala. Seu Tobias a encarava com seriedade. Será que ela iria se lembrar?
                — Ah, temos visita! — disse ela, por fim. Toda aquela tensão se transformara em sorrisos de alívio. — Por que não me falou, Tobias? Agora vou ter que colocar mais água no feijão! — sorriu, deu meia volta e adentrou a cozinha novamente.
                Toda aquela “conversa de adultos” estava aborrecendo o pobre Daniel, que estava com uma careta de tédio bem feia, sentado no colo de Sara. Fazia duas horas que havíamos chegado e ainda estávamos sentados no sofá. Resolvi leva-lo para brincar lá fora. O sol a pino e o céu sem nuvens eram super convidativos. Fui até meu antigo quarto (tomei cuidado para não olhar muito para as paredes, para não me perder num nevoeiro de nostalgia) e peguei uma bola de vôlei que meu pai me dera quando eu tinha uns seis anos de idade. Fomos para um grande terreno baldio que ficava em frente a casa, que as crianças chamavam de Caixa de Areia. Começamos a jogar a bola um para o outro. Estávamos nos divertindo. Era como se eu tivesse quatro anos, assim como ele. Era tão bom se sentir criança!
                Por falar em crianças, elas começaram a surgir de repente e  olhar nossa brincadeira. Acho que elas não estavam acostumadas a isso, coisa tão normal nos meus tempos de criança do campo. Duas, três, seis, doze crianças apareceram, querendo brincar com a gente. Daniel se enturmou em menos de cinco minutos. Ouço uma voz feminina dizer:
                — Vão começar a diversão sem mim?
                Sara sorriu e se juntou a nós. Dividimos as crianças em dois grupos e organizamos uma partida de Queimada. Ela, líder de um lado. Eu, líder do outro. A bola ia e voltava dos dois lados da Caixa com uma força e rapidez que deixaria qualquer garoto da Cidade tonto. As crianças se divertiam tanto! Era muito bom ver a alegria por debaixo dos cabelos desgrenhados, o rosto suado e as roupas sujas de areia. O time dela venceu duas partidas, o meu venceu três. Paramos para almoçar e depois retornamos para brincar com as crianças da rua, que eu descobri, conversando com meu avô, eram em sua maioria filhos dos meus colegas de infância.
                Decidi não esperar mais: pediria a mão de Sara naquela mesma noite. Talvez parecesse um pouco precipitado, mas não entendo dessas regras sociais. Não me importaria de quebrá-las.
                Entramos para casa quando as primeiras estrelas já despontavam no céu. Cansado, Daniel tomou um banho e foi direto para a cama. Sara foi logo depois. Já sentia o cheiro do jantar envolvendo toda a casa. Fui tomar banho logo após. Aquela torrente de água quente caindo sobre meu corpo me fez refletir sobre muitas coisas – quase como uma viagem ao meu interior. Esse sempre foi meu grande problema: no banho, eu me perdia no tempo. Não sei ao certo quantos minutos fiquei embaixo do chuveiro, mas quando saí, o clima estava diferente. Seu Tobias estava sentado numa das poltronas da sala, com o olhar perdido no nada. Fui até meu quarto e peguei a caixa de veludo. Procurei Sara em todos os quartos, na varanda, na cozinha, e até no banheiro de onde eu tinha acabado de sair. Ela não estava lá. Fui correndo a porta da frente. O carro dela também havia desaparecido.
                — Vô, onde está a Sara?
                — Foi... foi melhor assim. — disse ele, com a voz fria, tentando manter a calma diante de meu surto.
                — Por quê? O que houve, vô? O que você disse a ela? Por que ela foi embora? — indaguei, chegando ao fim das sentenças gritando tanto que senti minha garganta arder.
                É óbvio que tinha sido algo que ele disse. Não deveria ter deixado ela sozinha com meu avô depois daquele olhar na soleira da porta. O que será que eles tinham discutido? O que será que tinha acontecido?
                Dona Inês veio interferir. Olhou para mim e disse:

                — Marcelo, pare de gritar! Mário está dormindo que nem um anjinho no quarto. Ele é a sua cara...

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