O sol
de inverno brilhava no céu. Monstro colocava a cabeça para fora da janela,
fazendo o pouco pêlo que tinha se balançar contra o vento. Meu pouco cabelo
também se balançava enquanto eu o segurava em meu colo. Sara dirigia ao meu
lado silenciosamente e Daniel lia gibis no banco de trás.
Férias
em família? Fora isso que Sara me propôs, e eu sugeri a fazenda dos meus avós,
não tão distante da Cidade. Família entre aspas, afinal, ela e eu ainda
acertávamos nossas arestas, e Daniel era apenas uma criança muito apegada a
mim. Férias entre aspas, pois tínhamos apenas este fim de semana de folga.
Segunda, Sara deveria voltar para seu emprego na livraria.
Surpresas
viriam de todos os lados e eu não sabia.
Do meu
lado, pelo menos, ela estava guardada num bolso da mochila. Numa pequena caixa
de veludo. E ali dentro, muito mais que aquele tradicional símbolo de fidelidade:
ali estava meu amor, minha fé num futuro ao lado de alguém que eu parecia
predestinado a encontrar.
Saímos
da rodovia principal e entramos por uma estreita estrada de chão. Quanto mais a
frente caminhávamos na estrada, mais minhas memórias da infância afloravam: a
poeira subindo enquanto as crianças corriam e se escondiam atrás das árvores, o
cheiro do almoço da vizinha, a lama nas botas, um velho tocando violão sentado
em sua cadeira de balanço. Mas eu mudei e as coisas por ali mudaram também.
Enquanto minha barba ia crescendo, carros antigos tomaram o lugar das carroças.
Todos os casebres, por mais simples que fossem, tinham uma TV. Alguns tinham
até computador, internet. A maioria das crianças tinha um celular nas mãos. Era
impressionante o quanto tudo tinha mudado em tão pouco tempo. Era
impressionante o quanto eu tinha mudado nesse pouco tempo em que me mudei dali.
O carro
chacoalhava bastante ao passar pela estrada irregular e as pedras no meio do
caminho. As pedras... Minha vida cheia de altos e baixos. A vida de qualquer
um. A mão que afaga é a mesma que apunhala e tudo muda em um piscar de olhos...
Balancei a cabeça para afastar os pensamentos estranhos e vi que tínhamos
chegado.
— É
aqui.
Descemos
do carro. Meu avô nos esperava a porta, com um largo sorriso de quem não vê o
neto há tempos. Nós nos abraçamos até perdermos a noção do tempo. Seu Tobias
era um homem fantástico. Era como um segundo pai para mim. Se não fosse ele e
minha avó, essa mudança radical nos últimos quatro anos não teria acontecido
comigo. Hoje eu não seria um programador com aspirações à escrita. Eu não
saberia viver sozinho.
Ao ver
Sara, no entanto, seu sorriso azedou. Foi como um flash, uma questão de
segundos, o suficiente para eu perceber. Logo depois, num sorriso quase
teatral, a cumprimentou. Sara, por outro lado, parecia mais natural, mas também
nem tão confortável. Apresentei-os. Peguei Daniel no colo e o incluí nos
cumprimentos. Meu avô nos convidou a entrar na casinha simples, porém entulhada
de móveis que eu conhecia muito bem.
A minha
primeira reação foi perguntar por dona Inês, minha avó. A mulher mais generosa
e a melhor cozinheira que eu já conheci na minha vida. Os olhos do meu avô
marejaram ao tocar no nome dela. Me disse que ela estava piorando, e ele simplesmente
não sabia o que fazer...
Quando
saí da fazenda, há quatro anos, minha avó tinha acabado de ser diagnosticada
com Alzheimer. Lembro-me que na época, eu pensei: “Que estranho essa vida.
Passamos anos tentando esquecer muitas coisas, e quando nosso corpo se
encarrega de fazer isso por ele mesmo – esquecer tudo – nós odiamos, queremos fugir. Não seria melhor
começar tudo de novo? Viver cada dia como se o anterior não tivesse
acontecido?”
Alguns
instantes depois, dona Inês irrompe pela porta que divide a sala da cozinha.
Viu nós quatro sentados no sofá puído coberto com lençóis igualmente surrados e
nos encarou por alguns instantes, como se analisasse a situação. Olhei
fixamente para ele e foi aí que eu entendi: o terror não é para quem esquece. É
para quem não é lembrado. A angústia de cada segundo que ela refletia fazia meu
coração se chocar contra o meu peito de maneira tão forte que eu sentia que se
ela demorasse mais alguns segundos o mundo ao meu redor se dissolveria. Sara e
Daniel olhavam para ela, os dois confusos sem saber o que fazer. Monstro,
alheio a tudo, dormia num canto da sala. Seu Tobias a encarava com seriedade.
Será que ela iria se lembrar?
— Ah,
temos visita! — disse ela, por fim. Toda aquela tensão se transformara em
sorrisos de alívio. — Por que não me falou, Tobias? Agora vou ter que colocar
mais água no feijão! — sorriu, deu meia volta e adentrou a cozinha novamente.
Toda
aquela “conversa de adultos” estava aborrecendo o pobre Daniel, que estava com
uma careta de tédio bem feia, sentado no colo de Sara. Fazia duas horas que
havíamos chegado e ainda estávamos sentados no sofá. Resolvi leva-lo para
brincar lá fora. O sol a pino e o céu sem nuvens eram super convidativos. Fui
até meu antigo quarto (tomei cuidado para não olhar muito para as paredes, para
não me perder num nevoeiro de nostalgia) e peguei uma bola de vôlei que meu pai
me dera quando eu tinha uns seis anos de idade. Fomos para um grande terreno
baldio que ficava em frente a casa, que as crianças chamavam de Caixa de Areia.
Começamos a jogar a bola um para o outro. Estávamos nos divertindo. Era como se
eu tivesse quatro anos, assim como ele. Era tão bom se sentir criança!
Por
falar em crianças, elas começaram a surgir de repente e olhar nossa brincadeira. Acho que elas não
estavam acostumadas a isso, coisa tão normal nos meus tempos de criança do
campo. Duas, três, seis, doze crianças apareceram, querendo brincar com a
gente. Daniel se enturmou em menos de cinco minutos. Ouço uma voz feminina
dizer:
— Vão
começar a diversão sem mim?
Sara
sorriu e se juntou a nós. Dividimos as crianças em dois grupos e organizamos
uma partida de Queimada. Ela, líder de um lado. Eu, líder do outro. A bola ia e
voltava dos dois lados da Caixa com uma força e rapidez que deixaria qualquer
garoto da Cidade tonto. As crianças se divertiam tanto! Era muito bom ver a
alegria por debaixo dos cabelos desgrenhados, o rosto suado e as roupas sujas
de areia. O time dela venceu duas partidas, o meu venceu três. Paramos para
almoçar e depois retornamos para brincar com as crianças da rua, que eu
descobri, conversando com meu avô, eram em sua maioria filhos dos meus colegas
de infância.
Decidi
não esperar mais: pediria a mão de Sara naquela mesma noite. Talvez parecesse
um pouco precipitado, mas não entendo dessas regras sociais. Não me importaria
de quebrá-las.
Entramos
para casa quando as primeiras estrelas já despontavam no céu. Cansado, Daniel
tomou um banho e foi direto para a cama. Sara foi logo depois. Já sentia o
cheiro do jantar envolvendo toda a casa. Fui tomar banho logo após. Aquela
torrente de água quente caindo sobre meu corpo me fez refletir sobre muitas
coisas – quase como uma viagem ao meu interior. Esse sempre foi meu grande
problema: no banho, eu me perdia no tempo. Não sei ao certo quantos minutos
fiquei embaixo do chuveiro, mas quando saí, o clima estava diferente. Seu
Tobias estava sentado numa das poltronas da sala, com o olhar perdido no nada.
Fui até meu quarto e peguei a caixa de veludo. Procurei Sara em todos os
quartos, na varanda, na cozinha, e até no banheiro de onde eu tinha acabado de
sair. Ela não estava lá. Fui correndo a porta da frente. O carro dela também
havia desaparecido.
— Vô,
onde está a Sara?
—
Foi... foi melhor assim. — disse ele, com a voz fria, tentando manter a calma
diante de meu surto.
— Por
quê? O que houve, vô? O que você disse a ela? Por que ela foi embora? —
indaguei, chegando ao fim das sentenças gritando tanto que senti minha garganta
arder.
É óbvio
que tinha sido algo que ele disse. Não deveria ter deixado ela sozinha com meu
avô depois daquele olhar na soleira da porta. O que será que eles tinham
discutido? O que será que tinha acontecido?
Dona
Inês veio interferir. Olhou para mim e disse:
—
Marcelo, pare de gritar! Mário está dormindo que nem um anjinho no quarto. Ele
é a sua cara...
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