10 de agosto de 2013

[502] Episódio Três: Vazios do coração



As paredes pintadas, pouco a pouco, vão dando vida ao apartamento. Um colchonete, umas roupas de cama, alguns livros, meu notebook e minhas malas... os únicos objetos que tenho no momento. As mobílias virão um dia...


Há coisas minhas guardadas na casa de Eva...    

Largo o pincel, abandono por instantes as tintas, os rolos, a aguarrás... Penso nela. Penso em Eva Nigri, irmã do pai adotivo de minha mãe! Pessoa que muito nos ajudou, reconheço, mas, até hoje, através de seus comentários maliciosos a respeito da vida de Shak, me deixa com uma sensação de obrigação emocional doentia pelo que fizera. 

Eva era bem mais nova que meu vô Samuel. Casada, com uma família bem estruturada e financeiramente equilibrada, primeiro trouxe minha mãe e a ajudou muito.  Shak cursou a universidade de Belas Artes, se formou, mas trabalhou para a tia como forma de colaborar nos trabalhos domésticos e poder garantir sua sobrevivência, já que seus pais não podiam mantê-la aqui no Brasil.

Passado um tempo, Eva me trouxe, de certa forma me afastando da tristeza em que se tornou a chácara lá em Portugal depois das mortes subsequentes da vó Eloah e da minha mãe. Mas me separando também de Paolo, meu padrasto, irmão dela que, ao se casar, deixou certa amargura na família.

Volto aos pincéis... Não quero pensar nisso porque não me faz bem. Traz-me a lembrança do preconceito enfrentado pelos dois, o que vivenciei bem de perto aconchegada aos carinhos e encantos da minha vó quem eu considerava como minha mãe de verdade.


Envolvida em meus pensamentos não consigo pintar o rodapé. Ali, a lata de tinta branca. A mesma tinta respingada pelo chão, escorrida na porta, deixando aparente a minha inexperiência na arte de pintar paredes. O pano ressecado e endurecido, embebedado de removedor, uso para limpar toda aquela sujeira. Tudo para desprender-me daquele tempo que teima em não e deixar em paz.


Levanto e vou à janela. Lá vem a consciência novamente atentando meu juízo: “Há um ano resolveu sair da casa de Eva e ir morar sozinha, mas foi ela quem lhe deu a oportunidade de estar nessa cidade e refazer sua vida”. Olhei para a lua daquela noite calorenta...

Não poderia deixar de lado o que minha mente acirrava e acendia naquele instante. Não havia como continuar vivendo em um lugar em que os desentendimentos familiares iam se tornando mais frequentes e tanta amargura guardada, todo aquele disse me disse rancoroso, nada mais fazia sentido.

Cada um faz de sua vida o que considera bom para sua vida. Concorda? E quem sou eu para julgar se o que Shak e Paolo escolheram para eles teria sido bom ou ruim... Garanto que, mesmo distante, sabia que eles eram felizes.
Não procuro Eva que também não me procura. Mas tenho maior apreço pelo que fez e sei que preciso superar as barreiras da vaidade e do orgulho para rever esse sentimento que, às vezes, me corrói e me entristece, deixando-me ainda mais solitária do que já sou.

Prefiro, no momento, dizer-me só, assumindo a solidão íntima que me acompanha desde que nasci.

O apartamento... Ah! Está quase todo pintado, o chão eu limpo rapidinho... E é certo: nem muitas mobílias ocupam os vazios do coração.

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