15 de agosto de 2013

[201] Quarto Episódio: Hermínia

ona Wilma, mulher admirável e dedicada às coisas de Deus. Acharia que vive uma vida imaculada se não lhe tivesse atentido umas duas confissões. Tão prestativa, descobri que além das várias funções acumuladas, ela também é do "Departamento de Estatísticas Paroquiais". Tendo seus primeiros resultados, ligou-me num domingo à tarde, antes da missa das seis:
- É que eu tenho percebido que, desde que o senhor assumiu nossa paróquia, houve uma diminuição na procura pelas confissões...
- Houve? Acho realmente uma pena, D. Wilma. Verei o que posso fazer para tentar amenizar isso usando as homilias.
- Oh, sim, faça isso! O senhor já deve estar acostumado com essa situação, não é?
- Não. Esta é a primeira paróquia que assumo. Estou acostumado a pouquíssima coisa.
- Hum... é que, Frei, principalmente os mais jovens podem ficar constrangidos de falar certas coisas, com todo respeito, a um homem jovem e bem apessoado.
- Imagino que sim. Verei o que posso fazer e até mais
.
Não que eu tenha imaginado uma vida de emoção no sacerdócio algum dia. Talvez quando pensei em ser capelão, mas acabei por não tentar.
O correr das horas e da solidão me fez retomar meu "instrumento litúrgico proibido", mas que tem um simbolismo maravilhoso, similar ao do turíbulo aliás: meu maço de cigarros. Deus e meus Marlboro filtro-vermelho têm sido minhas companhias constantes. Fumo sempre na pequena área ao fundo do meu apartamento. Reflito e, com a fumaça, espero que meus reflexões cheguem a Quem as possa ouvir.                                              
                             

Depois de ouvir pessoalmente mais uma vez o relatório estatístico e cumprimentar as pessoas na saída da paróquia, comecei o regresso ao meu apartamento. Esperei um ônibus que por lá passasse não mais do que dez minutos; decidi, então, andar.
A Cidade é feita de camadas, descobri. Alguma relação estranha entre tempo e espaço. Embrenhei-me numas ruelas em que há
 uns sobrados, onde provavelmente há muito tempo havia comércio nos estabelecimentos térreos, pequenos comerciantes morando sobre eles e escravos no porão. Os mesmo postes que iluminaram este passado agora iluminam uma boa quantidade de gente jovem, que festeja por alguma razão nos vários bares pequenos que se espalham na rua ziguezagueada. As formas, que não mais dizem respeito ao presente, foram invadidas por outras funções para continuarem existindo, de algum modo.
Tive vontade de sentar um pouco ali e tomar alguma coisa. Pensei no risco. Levei a mão ao pescoço numa ameaça de retirar a clesma, que me incomodava como uma coleira. Resisti. Procurei apenas um lugar para assentar e, atendendo-me rapidamente o garçom, pedi uma taça de vinho. Seco.
Meu coração deu um sobressalto quando, do meio da fumaça que eu expelia à minha frente, sentou-se alguém à minha mesa. "Dona Wilma!", empalideci. Mas Wilma não tinha chifres.
- Acho que estamos indo pra mesma festa - era um voz uniforme e despreocupada, acompanhada por sorriso de lascívia.
- Talvez - disse eu, desconcertado - Crise de identidade? Não vemos todos os dias esse híbrido de anjo e demônio por aí.
Ela acariciou as pontas dos chifres vermelhos, ajeitou na cadeira suas asas de penas brancas. Eu ajustei a clesma.
- Não seja tão dualista, homem! Por que não posso ser os dois? Ou algo além dos dois? - apoiava o rosto esguio nos punhos e me olhava fixamente - mas entendo se tiver alguma preferência pela parte do anjo.
- Nunca fugi dos demônios, desde que eu possa saber seus nomes.
- Pois prometa não me exorcizar. Sou Hermínia.
- Frei Otávio, prazer - e apertei-lhe a mão branca.
- Otávio, pare de levar a sério esse personagem, ainda não estamos na festa.
- Não é personagem, Hermínia, sou mesmo um frei.
Ela riu desconcertadamente e me encarou um pouco depois. Parecia não querer cair em alguma pegadinha, mas aceitou minha revelação depois de observar meu modo de portar.
- Meu Deus, desculpe... eu não pensei que era padre de verdade... eu não... ah, que vergonha!
- Se achasse que eu era mesmo padre, não teria vindo falar comigo, não é?
- Exatamente - assentiu segura, reclinando a cabeça.

- Não imagina como uma vida em que as pessoas não podem chegar até você é chata, Hermínia.

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