A trovoada foi tão forte que fez
Mirella engolir a vontade de fumar!
As vidraças estremeceram e um
vento forte assobiou sinistro. Não demorou e as luzes começaram a piscar. Todos
esses efeitos desviaram a atenção dela do computador. Levantou-se e foi até
a área pegar umas velas e fósforos. Mal chegou ao seu destino e as luzes
apagaram. Ficou no breu total. Parecia ter sido geral.
Tateando as gavetas do armário se deu conta de que não estavam ali. Então lembrou haver se desfeito dos fósforos desde que comprara
seu fogão com acendimento automático. Privilégios da modernidade que naquele
momento de nada serviam.
Mas e as velas?
Vasculhou um pouco mais as
gavetas e nada. Os olhos já começavam a acostumar-se com a escuridão. Ainda assim
precisou seguir na procura esbarrando nos móveis para chegar até a sala e
verificar se restavam algumas velas por lá.
Se existiam medos em Mirella,
insetos voadores e tempestades magnéticas eram dois deles. Pavor de trovoadas e
seus rompantes. Quando estrondeavam, pegavam-na sempre de surpresa.
Finalmente encontrou umas velas
inteiras e alguns toquinhos. Mas e daí? Como iria acendê-las?
Ah, que bom seria se todos os
dilemas da vida fossem simples velas a serem acesas...
Decidiu que procuraria ajuda com
seus vizinhos.
Primeira opção seria a menina
esquisitinha que mora em frente ao seu apartamento.
Ela não tem cara de quem tem velas ou sequer fósforos.
Na verdade ela tem todo jeito de quem não tem nada.
Descartou.
Pensou então pedir ao morador do
andar de cima, pelo menos só subiria um lance de escadas. Lembrou que o mesmo
tem um cachorro que late irritantemente e que carrega como alcunha Monstro.
Quem diabos denomina um cão com esse nome? O animal deve ser um monstro no
sentido literal da palavra. Não iria se arriscar, desistiu.
Começou a ficar inquieta. Se os
dois foram eliminados de sua lista, restava-lhe quem? Descer até o primeiro
andar nem pensar! Não naquela escuridão! E além do mais, Sr Célio estava
internado e a outra moradora lhe parecia meio caduca.
Bom, tem o cara que gosta de
fuxicar o lixo dos outros. Mirella, certa vez, ouviu um barulho suspeito vindo do corredor
e, quando olhou pelo olho mágico da porta, avistou um homem fuxicando a lixeira. Como a porta da mesma estava entreaberta, pode observá-lo em ação. Achou aquilo estranhíssimo.
Ficou sabendo, mais tarde, que seu vizinho tinha cismas de sustentabilidade.
Morava sozinho e até que era jeitosinho. Não, nada disso, sem segundas
intenções! Melhor nem se aproximar! Vai parecer que está criando motivos para
uma aproximação. Risca esse.
Seu pensamento foi tão categórico
que percebeu-se repetindo a última frase em voz alta:
- Próximo!
O rapazinho do terceiro
andar. Um menino com aparência frágil, triste. Muito discreto. Ele tem um namorado. Talvez seja melhor não
incomodá-lo. Seria constrangedor interromper
qualquer coisa.
Lembrou de uma vez que esbarrou com o casal na porta do edifício. Não se falaram, foi rápido. Enquanto ela chegava, eles saíam. Estavam falantes e pareciam muito apaixonados. Bateu uma pontinha de inveja nela, afinal, era um casal. Um
casal gay e eu aqui, sozinha. Todo mundo tem alguém, nem que seja um cão
chamado monstro. Será que deveria ser mais condescendente com os animais e
adotar um gatinho? Riu. A ideia não é má mas preferiu pensar num
gatinho que beija, abraça e fala no lugar de miar.
E por falar em gatinho, lembrou-se da
nova inquilina que chegou ao edifício recentemente e trouxe, a tiracolo, justamente, um felino muito inconveniente. Não. Não vou me apresentar pedindo fósforos.
Deu- se conta então que descartara
quase todo mundo.
Quase...
Porque no segundo andar mora um
Padre com cara de bonzinho e Padres, em geral, devem ter velas em casa e, se tem
velas, obviamente devem ter também fósforos.
Bingo!
Apesar de ter que descer quase quatro lances de escadas, não pensou muito, poderia desistir. Pegou seus cotocos de velas,
colocou-os num saco e começou a descer as escadas tateando pelo corrimão frio.
Naquela hora, diante daquela
escuridão, o edifício parecia mais velho e sombrio do que normalmente. As
correntes velhas do elevador rangiam desafinadas quando tocadas pelo vento que entrava pelas frestas dos basculantes e o silêncio dos apartamentos a fazia escutar vozes inexistentes dos moradores como se fossem
burburinhos. Já começava a se
arrepender de ter tido a ideia de pegar os fósforos.
Chegou à porta do Padre e
hesitou.
E se ele não fosse bonzinho? E se fosse daqueles padres chatos que
puxam longas conversas e querem saber da vida alheia? E se fosse um moralista?
E se... parou. Não era hora para achismos.
Naquele momento, para ter alguma
luz, dependeria da boa vontade daquele servo de Deus.
Suspirou e bateu à porta.
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