31 de maio de 2013

[403] Episódio 8: Virando páginas...

Aquela noite em breu total serviu pelo menos para uma coisa: Mirella fez um novo conhecimento no Edifício. 

Talvez ela já possa até considerar o Frei (sim, nada de Padre, ele é Frei) um “amigo” apesar dessa palavra ter um significado muito forte em seu vocabulário sentimental.

Mas com certeza foi uma ótima experiência que prometo compartilhar mais para frente.

Tanta coisa aconteceu depois daquela noite à luz de velas que nem sei por onde começar...



Mirella recuperou seu contato com o Bentinho - aquele passado que ela não queria trazer para o presente.  

Após algumas conversas pelo MSN marcaram um encontro.

Criar expectativas sobre a possibilidade desse encontro foi desesperador para Mirella. E se ele a achasse velha, gorda, feia?! E se ele tentasse algo?! E se... lá vinha ela novamente com seus achismos. Baita ansiedade! Não teve jeito: já tinha marcado o encontro, agora era relaxar e encarar.

Foi desconcertantemente que Mirella cumprimentou Bentinho. Não podia acreditar no que aquele jovem havia se transformado. Bentinho era forte, alto, tinha músculos definidos nos lugares em que hoje percebia gorduras excessivas. A aparência jovial e máscula deu lugar a um homem com aspecto sujo e desbotado. Estava ali, à sua frente uma figura grotesca. Mirella deu graças a Deus por ter sido desprezada por alguém que, definitivamente, não a merecia.

Conversa vai, conversa vem e Bentinho não despregava os olhos dela. Sentindo um certo incômodo, não via a hora de acabar logo com aquele encontro. Bem que ele tentou arranjar desculpas pelo que fez no passado, articulando mil argumentações que hoje não convencem mais. Se estava pensando que este seria um reencontro, perdeu sua viagem. Ela cortou toda e qualquer tentativa de intimidade.

No final da conversa, após alguns copos de cerveja, despediram-se com palavras de porvir às quais Mirella jamais cumpriria.

Mais um capítulo de sua vida encerrado.

Saiu daquele lugar respirando aliviada:

- Até que valeu a pena! Sinto uma leveza quase cósmica! 

Diante daquele homem a quem deu uma parte de sua vida por amor e por quem fora rejeitada, sentiu-se, de certa forma, vingada! Não precisou articular sequer ofensas, a sua presença o fez por ela: uma mulher linda, madura, segura e totalmente refeita! E, aposto, mil vezes melhor do que o que ele tem em casa. 

Ai, fui cruel eu sei, não resisti!

Naquela tarde Mirella estava tão bem que nada lhe tiraria o bom humor. 

Aproveitou que estava num shopping perto do Edifício e presenteou -se com alguns mimos. Voltou para seu apartamento tão feliz que nem ligou para o fato de que mais uma vez aquele maldito elevador estava emperrado.

Subiu as escadas como quem sobe ao paraíso.

16 de maio de 2013

[204] Episódio 5: Da Terra a Marte






- Não queremos arruinar Marte - disse o capitão. - É muito grande e belo.
- Acha que não? Nós, terrestres, temos um enorme talento para arruinar coisas grandes e belas. A única razão pela qual não instalamos barracas de cachorro-quente no templo egípcio de Karnak foi porque estava fora da estrada e não oferecia grande oportunidade comercial.

Ray Bradbury - As Crônicas Marcianas


Minha irmã disse que eu precisava de um plano de vida a longo prazo: pois então, acho que vou para Marte. Sim, eu sei que não é provavelmente o que ela tinha em mente, mas convenhamos que meu histórico não condiz com o tripé Emprego Estável - Casamento Feliz - Descendência Saudável. Se essa for a definição oficial de existência bem sucedida é bastante provável que eu seja apenas desperdício de matéria genética - tese com a qual minha irmã provavelmente concordaria. Procurando uma rota de escape, vi na internet que uma organização holandesa está recrutando voluntários para colonizar o planeta vermelho. Escuta só: nos próximos anos serão enviadas sondas e outras parafernalhas até que, finalmente, em 2023 a primeira exposição tripulada chegará ao seu destino.

Dez anos me parecem pouco para começar a fincar bandeirinhas em nosso sistema solar, mas não sou perito e, sim, eu prefiro acreditar que estamos a uma década do futuro sonhado por Ray Bradbury nos anos 50. Nem tivemos que esperar tanto tempo, se você for parar para pensar, e mesmo que todas as histórias sobre ir à cata de homenzinhos verdes no planeta vizinho pertençam não apenas ao século, mas ao milênio passado. Estamos no limiar de algo muito empolgante, Cotoco, e eu estou pensando em me candidatar. É sério, não me olhe desse jeito.

Claro, minhas expectativas de êxito são baixas, ao menos para as primeiras levas de colonos. Ao contrário do que você provavelmente está pensando, a demanda de inscrições ultrapassou qualquer expectativa. Há milhares de pessoas dispostas a deixar a Terra sem olhar para trás. Sim, porque a passagem é só de ida. Para além de enfrentarem uma viagem de 8 meses na qual perderão massa óssea e muscular, os colonos terão de se adequar à gravidade de Marte, bem mais fraca que a da Terra. A boa notícia é que não precisarei fazer aquele regime há tanto tempo adiado, já que pesarei bem menos. A péssima notícia é que não é possível uma readaptação à gravidade do nosso próprio planeta, e o custo de uma viagem de volta porque se ficou com saudade de casa é inviável - quem conseguir chegar à Marte terá como única certeza a de que morrerá nesse planeta, em quinze dias ou cinquenta anos.

A ideia me fascina por inúmeras razões, que passam pela simples curiosidade intelectual até a vaidade de "fazer história". Mas o principal motivo talvez tenha a ver com a empolgação infantil de ser astronauta: é muito sedutor o conceito de desbravar mundos desconhecidos. Seremos os novos Argonautas, daremos início à era das Grandes Navegações espaciais e, o que é melhor, vou ter tempo para aperfeiçoar minha imitação do monólogo do Capitão Kirk - "Space, the final frontier"

É claro que a realidade da colonização marciana não vai ser tão glamurosa quanto a vida na Enterprise retrô. Herbert Viana não cantou à toa que  "O céu de Ícaro tem mais poesia que o de Galileu". Se o problema fosse só se preocupar em não passar muito perto do sol para não derreter a cera das asas o trabalho até seria simples. A energia virá de painéis solares, a água será extraída do solo e constantemente reciclada, os alimentos precisarão ser cultivados em estufas - e é para torcer que as estufas funcionem.

Li em algum lugar que um bambambã da NASA teria dito que os primeiros colonos precisavam ter o espírito dos colonizadores do Velho Oeste americano. Com a diferença que não vai dar para cansar da poeira, do sol e da vida frugal. Quer dizer, provavelmente quem se lançava num perrengue desse naipe estava desesperado o suficiente para não poder desistir, então nesse sentido o Velho Oeste também fosse tão exótico quanto Marte. Talvez estejamos sempre procurando formas de correr de nós mesmos e de nossos problemas, e é talvez justamente por isso que vamos sobreviver ao sucateamento do nosso planeta, e acabaremos nos espalhando como pragas ao redor de outras estrelas. Estou começando a falar como um moralista de romance pulp, eu sei, é melhor parar.

Vou mandar o formulário de inscrição para Marte. Juro que vou, Cotoco, você vai ver só. Depois do café. Vou beber o máximo de café enquanto ainda é tempo.

6 de maio de 2013

[305] Episódio 3 - Sem mais delonga...





Vivo num quadrado isolado no qual minha única companhia é minha própria sombra, pois nem eu mesmo estou mais comigo. Desconfio que a solidão me persegue. Solidão? Talvez isto aqui seja um pedido de socorro sem resultados, ou um lamento que ainda hoje irá acabar. Assim serenamente eu imagino que a solidão é apenas uma companheira teimosa e obstinada que insiste em caminhar ao meu lado.

Inevitavelmente, eu a solicito.

Ou ela me é imposta.

Cruel ou bondosa.

E quando me invade, não é nada mais nada menos do que o meu próprio eu querendo se conhecer verdadeiramente. Não tem onde se refugiar, essa é que é a verdade. Ela sempre dá um jeitinho de me visitar, e assim tornou-se inquilina da minha alma. Será que aqui, ela consegue viver sem ser esmagada pelas minhas frustrações? No entanto, o seu jeito obscuro pode provocar estranheza no meu ser, será ela expulsa de mim, transportada para outra pessoa? Talvez.

Eu me pregunto se há alguma diferença entre existir e viver. Será que há? Eu não sei dizer – aliás, não sei se vivo, tampouco se existo – que necessidade há de nutrir um cotidiano que em todos os dias parece ser domingo? Domingo que é tédio todo descrito e desenhado, ampliado para toda a minha vida.

Agora, aqui estou eu presa em minha própria culpa e angústia. Sem saber como devo prosseguir com essa vida que eu mesma amaldiçoei; como andar com a cabeça erguida sem lembrar os pecados cometidos contra outros... Andarei com um peso insuportável sobre o meu ser enquanto me lembrar das coisas que cometi ou enquanto eu não conseguir dar um jeito de excluir esses pensamentos da minha memória. Quem me dera se minha mente fosse que nem uma memória de computador que desse para formatar e esquecer todo o meu passado...
E ainda tem o sumiço do Edgar para me importunar mais, por onde será que anda aquela criatura? Até ele cansou das minhas lamúrias. Espero que nada de ruim tenha acontecido com ele, e quando eu terminar de beber essa garrafa de uísque eu saio para procurá-lo nessa grande Cidade movimentada de vidas transeuntes.

Mas devo antes imprimir meu grito e meu desespero que estão presos na minha alma. Que faço, Martin? Onde você está?

Sinto uma enorme perda dentro de mim, uma vontade de me abandonar. Mesmo quando tudo está bem, as lágrimas me afogam os olhos e deixo que eles fiquem inundados. Não sei por qual motivo permito que isso aconteça, mas sinto que as águas que brotam são do meu íntimo mais perturbador e que se eu não as fizer chover para fora de mim, sinto que morrerei embargada com minha própria dor. E de onde vem essa dor? Sinto-me como se não houvesse tempo bom, haverá sempre essa tempestade dentro de mim destruindo tudo que toco e todos que conheço. Através dessa conclusão, tomei uma decisão polêmica para alguns – vou planejar minha morte já que ela não vem. Quero logo de antemão pedir perdão a Deus, pois quando eu tirar minha vida sei que estarei furtando um pouco da vida dele que reside em mim.

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Imagem:
The Scream, de Edvard Munch

1 de maio de 2013

[403] Episódio 7: Luz e Velas



A trovoada foi tão forte que fez Mirella engolir a vontade de fumar!

As vidraças estremeceram e um vento forte assobiou sinistro. Não demorou e as luzes começaram a piscar. Todos esses efeitos desviaram a atenção dela do computador. Levantou-se e foi até a área pegar umas velas e fósforos. Mal chegou ao seu destino e as luzes apagaram. Ficou no breu total. Parecia ter sido geral.

Tateando as gavetas do armário se deu conta de que não estavam ali. Então lembrou  haver se desfeito dos fósforos desde que comprara seu fogão com acendimento automático. Privilégios da modernidade que naquele momento de nada serviam.  

Mas e as velas?

Vasculhou um pouco mais as gavetas e nada. Os olhos já começavam a acostumar-se com a escuridão. Ainda assim precisou seguir na procura esbarrando nos móveis para chegar até a sala e verificar se restavam algumas velas por lá.

Se existiam medos em Mirella, insetos voadores e tempestades magnéticas eram dois deles. Pavor de trovoadas e seus rompantes. Quando estrondeavam, pegavam-na sempre de surpresa.

Finalmente encontrou umas velas inteiras e alguns toquinhos. Mas e daí? Como iria acendê-las?

Ah, que bom seria se todos os dilemas da vida fossem simples velas a serem acesas...

Decidiu que procuraria ajuda com seus vizinhos.

Primeira opção seria a menina esquisitinha que mora em frente ao seu apartamento.
Ela não tem  cara de quem tem velas ou sequer fósforos. Na verdade ela tem todo jeito de quem não tem nada.

Descartou.

Pensou então pedir ao morador do andar de cima, pelo menos só subiria um lance de escadas. Lembrou que o mesmo tem um cachorro que late irritantemente e que carrega como alcunha Monstro. Quem diabos denomina um cão com esse nome? O animal deve ser um monstro no sentido literal da palavra. Não iria se arriscar, desistiu.

Começou a ficar inquieta. Se os dois foram eliminados de sua lista, restava-lhe quem? Descer até o primeiro andar nem pensar! Não naquela escuridão! E além do mais, Sr Célio estava internado e a outra moradora lhe parecia meio caduca.

Bom, tem o cara que gosta de fuxicar o lixo dos outros. Mirella, certa vez, ouviu um barulho suspeito vindo do corredor e, quando olhou pelo olho mágico da porta, avistou um homem fuxicando a lixeira. Como a porta da mesma estava entreaberta, pode observá-lo em ação. Achou aquilo estranhíssimo. Ficou sabendo, mais tarde, que seu vizinho tinha cismas de sustentabilidade. Morava sozinho e até que era jeitosinho. Não, nada disso, sem segundas intenções! Melhor nem se aproximar! Vai parecer que está criando motivos para uma aproximação. Risca esse.

Seu pensamento foi tão categórico que percebeu-se repetindo a última frase em voz alta:

- Próximo!

O rapazinho do terceiro andar. Um menino com aparência frágil, triste. Muito discreto. Ele tem um namorado. Talvez seja melhor não incomodá-lo. Seria constrangedor interromper qualquer coisa. 

Lembrou de uma vez que esbarrou com o casal na porta do edifício. Não se falaram, foi rápido. Enquanto ela chegava, eles saíam. Estavam falantes e pareciam muito apaixonados. Bateu uma pontinha de inveja nela, afinal, era um casal. Um casal gay e eu aqui, sozinha. Todo mundo tem alguém, nem que seja um cão chamado monstro. Será que deveria ser mais condescendente com os animais e adotar um gatinho? Riu. A ideia não é má mas preferiu pensar num gatinho que beija, abraça e fala no lugar de miar.

E por falar em gatinho, lembrou-se da nova inquilina que chegou ao edifício recentemente e trouxe, a tiracolo, justamente, um felino muito inconveniente. Não. Não vou me apresentar pedindo fósforos.

Deu- se conta então que descartara quase todo mundo.

Quase...

Porque no segundo andar mora um Padre com cara de bonzinho e Padres, em geral, devem ter velas em casa e, se tem velas, obviamente devem ter também fósforos.

Bingo!

Apesar de ter que descer quase quatro lances de escadas, não pensou muito, poderia desistir. Pegou seus cotocos de velas, colocou-os num saco e começou a descer as escadas tateando pelo corrimão frio.

Naquela hora, diante daquela escuridão, o edifício parecia mais velho e sombrio do que normalmente. As correntes velhas do elevador rangiam desafinadas quando tocadas pelo vento que entrava pelas frestas dos basculantes e o silêncio dos apartamentos a fazia escutar vozes inexistentes dos moradores como se fossem burburinhos.  Já começava a se arrepender de ter tido a ideia de pegar os fósforos.

Chegou à porta do Padre e hesitou. 

E se ele não fosse bonzinho? E se fosse daqueles padres chatos que puxam longas conversas e querem saber da vida alheia? E se fosse um moralista? E se... parou. Não era hora para achismos.  

Naquele momento, para ter alguma luz, dependeria da boa vontade daquele servo de Deus.

Suspirou e bateu à porta.