Você sabe quando está prestes a fazer
a maior merda da paróquia. Sempre sabe. Algum fio de nylon invisível
liga
todas as merdas possíveis de acontecer na sua vida e você tropeça
nesse nylon toda hora. Tem algo que te puxa, que te prende. E você vai,
claro. Eu aposto que você não se lembra da primeira vez que comprou
Yakult naquela padaria. E você compra há muitos anos, é um
relacionamento especial. Eu aposto que você não lembra se o cobrador do
ônibus que você pegou de manhã tinha um brinco na orelha. E você pega
esse ônibus todos os dias. Mas se eu perguntar sobre a primeira vez que
viu essa pessoa mesquinha que divide a cama com você, ah, você vai
lembrar. Com riqueza de detalhes. Você sabia que iria se apaixonar? Que
iria namorar, casar, ter filhos? Então por que diabos, dentre tantas memórias plausíveis, ficou justamente essa? Você sabia seu futuro? É o que eu te digo. O nylon amarrou teu
burro nesse toco.
Antes
de mais nada, eu não sou contra esse papo de amor romântico Acho todos
os casais mesquinhos em sua mesmice, nos seus bancos de praça, nas suas
vidas vigiadas, mas amo o amor. Amantes estão para amor como brócolis num molho branco. Detalhe. A verdade é que ninguém nunca me levou ao cinema e falar que não me
importo é uma maneira de disfarçar minha inoperância sentimental. Mas
sempre me importei. Sempre sofri com os namoradinhos nas praças, como já
desejei chuvas torrenciais, feriados em quartas-feiras, como já aticei cachorros de rua em cima dessa gente
melosa... gente mesquinha, que necessita um do outro e mais nada. Deviam
ser infelizes e cinzas, como eu, deviam deixar o amor em paz, sem
maculá-lo. Mas deixam? Não deixam. Flertam com ele, usam, enfiam-se órgãos adentro, esculhambam e escarafuncham, depois caem no desuso, nos
destroços, no litígio e na pensão alimentícia.
Eu
nunca tinha verbalizado isso, sabe, até acender este meu terceiro Camel
na porta do prédio. Joguei a guimba do segundo cigarro no chão e uma
menininha de seus 4 anos pegou e jogou no lixo, fazendo aquela cara de
reprovação absoluta que só cidadãos de 4 anos sabem fazer. Essa criança
veio de um lar onde as pessoas sabem que é feio sujar a cidade. E eu era
parte da família do "foda-se, a cidade já está suja". Nesse momento, eu
sabia que queria ter uma filha. Minha filha também jogaria no lixo as
guimbas de cigarro que eu não fui capaz de jogar.
Ia
me levantando da calçada pra não sujar a roupa, pensando em que nome daria a uma filha de Danilo, quando um rapaz
estranho me estendeu a mão. Aquilo era tão toscamente cavalheiro e pensar assim me fez perceber o quanto essa
cidade me transformou numa boçal. Mãos estendidas sempre me fudiam e eu
aprendi a fugir delas. Pra ser uma aborígene completa só faltava um
colarzinho de dente. Não fugi dessa vez porque todo o dia estava
estranho como esse branquelo na porta do meu prédio. Eu comprei um batom
na butique. Passei uma roupa verde clarinha, que devia estar guardada
na minha gaveta desde a Revolução Industrial. Comi brócolis. Era o fim
dos tempos.
Era
minha saga, esperando Danilo na porta do Edifício Cinza. Eu, minhas
notinhas de 10 reais, o moço magrelo, a catadora de lixo. E o fio de
nylon. Os olhos azuis de Danilo não me deixavam dormir. Os olhos azuis
de Danilo me fizeram comprar um cartão de 20 unidades logo assim que saí
do banco com meu seguro-desemprego no bolso. Minha boca no telefone beijava os olhos azuis de Danilo.
Na
carteira, uma das compras mais preciosas da minha vida inteira. Dois
bilhetinhos amassados do cinema. Eu sentia o fio do nylon da minha meia
arrebentada avisando que ia dar merda, mas ignorei, eu sempre ignoro.
Quando avistei Danilo, contei mentalmente todos os bancos da cidade onde iríamos nos sentar.
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Ártemis - noite do primeiro dia
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