18 de abril de 2013

[407] Episódio 5: Diário de Um Detento Três

Você sabe quando está prestes a fazer a maior merda da paróquia. Sempre sabe. Algum fio de nylon invisível liga todas as merdas possíveis de acontecer na sua vida e você tropeça nesse nylon toda hora. Tem algo que te puxa, que te prende. E você vai, claro. Eu aposto que você não se lembra da primeira vez que comprou Yakult naquela padaria. E você compra há muitos anos, é um relacionamento especial. Eu aposto que você não lembra se o cobrador do ônibus que você pegou de manhã tinha um brinco na orelha. E você pega esse ônibus todos os dias. Mas se eu perguntar sobre a primeira vez que viu essa pessoa mesquinha que divide a cama com você, ah, você vai lembrar. Com riqueza de detalhes. Você sabia que iria se apaixonar? Que iria namorar, casar, ter filhos? Então  por que diabos, dentre tantas memórias plausíveis, ficou justamente essa? Você sabia seu futuro? É o que eu te digo. O nylon amarrou teu burro nesse toco.

Antes de mais nada, eu não sou contra esse papo de amor romântico Acho todos os casais mesquinhos em sua mesmice, nos seus bancos de praça, nas suas vidas vigiadas, mas amo o amor. Amantes estão para amor como brócolis num molho branco. Detalhe. A verdade é que ninguém nunca me levou ao cinema e falar que não me importo é uma maneira de disfarçar minha inoperância sentimental. Mas sempre me importei. Sempre sofri com os namoradinhos nas praças, como já desejei chuvas torrenciais, feriados em quartas-feiras, como já aticei cachorros de rua em cima dessa gente melosa... gente mesquinha, que necessita um do outro e mais nada. Deviam ser infelizes e cinzas, como eu, deviam deixar o amor em paz, sem maculá-lo. Mas deixam? Não deixam. Flertam com ele, usam, enfiam-se órgãos adentro, esculhambam e escarafuncham, depois caem no desuso, nos destroços, no litígio e na pensão alimentícia.

Eu nunca tinha verbalizado isso, sabe, até acender este meu terceiro Camel na porta do prédio. Joguei a guimba do segundo cigarro no chão e uma menininha de seus 4 anos pegou e jogou no lixo, fazendo aquela cara de reprovação absoluta que só cidadãos de 4 anos sabem fazer. Essa criança veio de um lar onde as pessoas sabem que é feio sujar a cidade. E eu era parte da família do "foda-se, a cidade já está suja". Nesse momento, eu sabia que queria ter uma filha. Minha filha também jogaria no lixo as guimbas de cigarro que eu não fui capaz de jogar.

Ia me levantando da calçada pra não sujar a roupa, pensando em que nome daria a uma filha de Danilo, quando um rapaz estranho me estendeu a mão. Aquilo era tão toscamente cavalheiro e pensar assim me fez perceber o quanto essa cidade me transformou numa boçal. Mãos estendidas sempre me fudiam e eu aprendi a fugir delas. Pra ser uma aborígene completa só faltava um colarzinho de dente. Não fugi dessa vez porque todo o dia estava estranho como esse branquelo na porta do meu prédio. Eu comprei um batom na butique. Passei uma roupa verde clarinha, que devia estar guardada na minha gaveta desde a Revolução Industrial. Comi brócolis. Era o fim dos tempos.

Era minha saga, esperando Danilo na porta do Edifício Cinza. Eu, minhas notinhas de 10 reais, o moço magrelo, a catadora de lixo. E o fio de nylon. Os olhos azuis de Danilo não me deixavam dormir. Os olhos azuis de Danilo me fizeram comprar um cartão de 20 unidades logo assim que saí do banco com meu seguro-desemprego no bolso. Minha boca no telefone beijava os olhos azuis de Danilo.

Na carteira, uma das compras mais preciosas da minha vida inteira. Dois bilhetinhos amassados do cinema. Eu sentia o fio do nylon da minha meia arrebentada avisando que ia dar merda, mas ignorei, eu sempre ignoro.

Quando avistei Danilo, contei mentalmente todos os bancos da cidade onde iríamos nos sentar.

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Ártemis - noite do primeiro dia

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