2 de abril de 2013

[403] Episódio 6: Desabitando hábitos


“Estou com sede de mudanças mas não quero arrastar os móveis nem desentortar os quadros. Quero desabitar meus hábitos.” (Marla de Queiroz)



- Vidinha chinfrim, pensou Mirella.

Entra ano, sai ano e continuava naquela habitual tortura de se enfiar num escritório cinza para depois ir para sua casa, habitada num edifício cinza. Cinzas eram as borras de cigarros deixadas em seu lixo, cinzas eram seus pensamentos cheios de hábitos e manias. Cinzas eram as nuvens que desenhavam o céu naquela tarde chuvosa de um feriado sem graça.

- Quem manda ser burra. Depois de se endividar por causa de homem tem mais que ficar enfurnada em casa só imaginando onde poderia estar se não estivesse tão dura!

Duras escolhas. Duras consequências. 
Era um dedo podre para homens ou então seu cupido tinha miopia. 
Estava sozinha novamente. E, decididamente, Mirella não sabe ficar sozinha.

Levantou-se da cama e foi até a escrivaninha para ligar o computador. Fazia um tempo que não navegava na internet em busca de entretenimento. Havia desistido das redes sociais e dos sites de relacionamentos. Quem sabe teria ali, naquela máquina cinza metálica, alguma alegoria para seu dia. Deixou-o carregando e foi até a cozinha pegar um café.

No caminho, ligou o rádio. Ouvir música era um de seus hobbies. Coincidência ou não, tocava naquele instante justamente uma de suas prediletas! Seria um bom sinal?

Saracoteou o esqueleto um pouco e já voltou mais animadinha para o quarto. Clicou na página da rede social para acessar seu perfil. Precisava lembrar a senha! Qual era mesmo? Tentou por alguns segundos até que conseguiu. A página abriu e ela se assustou com a quantidade de convites para aceitar amizades. Engraçado, de onde tiraram que aqueles seres eram seus amigos? Tinha gente ali que ela nunca vira em sua vida. Foi descartando um por um. Repentinamente um nome chamou sua atenção. Nunca foi muito boa para guardar nomes. Era ele sim, conhecia bem o dono daquele sorriso. E bastou apenas olhar por um instante aquela foto que um rebuliço acometeu seu estômago feito borboletas revoando e a fez viajar no tempo...

Um tempo de sua conturbada adolescência quando os sonhos eram confundidos com a realidade e havia certezas absolutas. Uma vida cheia de aventuras inconsequentes que  riscam cicatrizes na alma. Momentos irrecuperáveis que deixam a ilusão de que tudo poderia ser diferente se...

Era ele sim: Bentinho. 

Um pouco diferente, óbvio, marcado pelas mudanças do tempo; cabelos grisalhos, pele cheia de sinais da idade, um pouco acima do peso. Não mais Bentinho e sim agora Sr Benedito. Só uma coisa não havia sentido essa passagem: o sorriso, que era inconfundível! Mirella não queria admitir, mas Bentinho tinha o dom para desestabilizá-la. Quando jovens tudo era permitido. Viveram momentos intensos, proibidos, cheios de paixão. Ela se entregou de tal forma que não mediu consequências em suas atitudes e numa cidade pequena, sabe com é, as notícias não tem tempo de serem digeridas. Virou chiclete nas bocas fofoqueiras onde as palavras eram cuspidas. Acabou achincalhada e desprezada  por seus pais. Saiu de casa e quando buscou abrigo nos braços daquele que acreditava que a aceitaria, sofreu o duro golpe da indiferença. Para piorar a situação descobriu uma gravidez indesejada que foi resolvida na base da clandestinidade dos frios quartos de clínicas obscuras que cumpriam o “duro” dever de aniquilar vidas. Não tinha mais o que fazer naquela cidadezinha de merda. Caiu no mundo e nunca mais olhou para trás. Jurou esquecer tudo e seguir em frente. 

Seria feliz apesar de tudo. O passado não lhe pertencia mais, até aquele momento.

A curiosidade foi maior que o desejo de desprezo. Aceitou o convite. Queria bisbilhotar sobre a vida dele e descobriu que estava casado, com filhos e bem sucedido. Por que essa aparição agora? O que a vida tentava lhe mostrar? Tudo que ela mais desejava era esquecer seu passado. Fizera questão de apagá-lo sem sequer sentir remorso, há não ser pelo aborto, retirando do mapa de sua vida aquela cidadezinha hipócrita.

Tomou um gole do café que já esfriava. 

O gosto da nicotina avivou em sua boca. Salivou vontade de fumar. 

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