6 de abril de 2013

[204] Episódio 4: A hóspede


Ele ainda não sabe, mas está ficando careca. Uma clareira começa a se formar no topo da cabeça; queira ou não, vai acabar se parecendo com um franciscano. Talvez antes disso se renda e decida raspar os tufos de cabelo que ainda não abandonaram o posto. Se ele pedisse minha opinião, era o que eu o incentivaria a fazer: diria que o crânio dele tem um formato interessante, e apostaria que ele ficaria melhor sem a massa preta semelhante a um poodle de médio porte que hoje esconde seu rosto. Mas ele ainda não sabe de nada e, se soubesse, duvido que me consultaria sobre alternativas estéticas.

A clareira começou em um ponto de difícil acesso, praticamente impossível de detectar no espelho do banheiro. Alguém teria de avisá-lo, mas a verdade é que ele não tem saído muito: até mesmo as compras do supermercado são feitas pela internet, e os entregadores não perdem tempo com fregueses que não dão gorjetas. A garotinha que sempre o visita não apenas é bem mais baixa do que ele, mas está interessada demais em si para notar qualquer mudança em outro lugar que não seja o próprio corpo. Se estivesse nascendo um chifre reluzente de unicórnio a menina não veria, ou não daria a mínima. Já eu, a única que sei, sou muito tímida para dizer qualquer coisa que possa desagradar meu anfitrião.

Ou, ao menos, é o que penso agora: até ontem eu me esforçava para que ele sequer soubesse que estava me recebendo. Calada e invisível como sou, consegui permanecer no anonimato completo por quase um mês. Não estou aqui para me gabar, mas ser tímida tem lá suas vantagens - se não nos relacionamentos interpessoais, ao menos como estratégia evolutiva. E eu teria conseguido me esconder por ainda mais tempo, não fosse nosso encontro desastrado na noite passada. Ele estava distraído, eu fui pouco precavida: sim, uma confluência de fatores a que poderíamos chamar destino.

A madrugada estava sendo difícil: já passava das três da manhã e nós dois estávamos tendo problemas para dormir. Ele estava preocupado em cumprir o ultimato do “devorador de almas”; termo cunhado para insultar o homem que havia ligado quatro vezes mais cedo ao longo do dia, cobrando um trabalho que, aparentemente, já deveria estar pronto há mais de uma semana. Se não entregasse o prometido até segunda-feira, o adiantamento previsto seria cancelado, “os R$ 5,00 que esse puto me paga por página”. E a luz havia acabado pouco depois da meia-noite - um verdadeiro pesadelo para quem prefere trabalhar de madrugada. Irritado demais para dormir e impossibilitado de trabalhar às vésperas do prazo final, dedicava-se à minuciosa arte de arrancar cabelos da cabeça e queimá-los na vela acesa ao lado da cama. Se ele soubesse que está ficando careca provavelmente não procuraria outra coisa para fazer, mas a ignorância às vezes é um benção.

Quanto a mim, não conseguia dormir porque estava com fome. O dia havia sido difícil: meu estômago não tinha lembrança da última vez que algo passara por ele. Como choveu o dia inteiro, não havia oferta de mosquitos. E as baratas realmente sumiram após o veneno que ele espalhou nos ralos ao curso da última semana. Esse talvez seja o grande problema de morar clandestinamente na casa de alguém: a escassez de recursos. Não é como se eu estivesse esperando um convite para jantar, mas se o apartamento continuasse estéril do jeito que estava não levaria muito tempo até que ele voltasse a morar sozinho. O que seria uma pena, já que, modéstia a parte, sou uma excelente companhia. Calada, pouco espaçosa e, sobretudo, boa ouvinte.

Unidos pela insônia, nossos caminhos se cruzaram no escuro da sala. Ele havia estabelecido uma rota até a próxima cerveja na geladeira antes de queimar o resto da franja, eu estava perseguindo o primeiro inseto que via em dois dias, uma espécie de besouro marrom. Insosso, mas melhor do que nada, já que me restituiria as forças. Ele notou algo frio entre os dedos do pé, eu entrei em desespero: iria ser esmagada por aquela desavisada coluna de carne. Quando ele levantou o pé para checar o que quer que fosse que lhe havia feito cócegas entre os dedos eu já estava atrás da mesa, tremendo como nunca. Mas naquele encontro trágico ele ficou com uma parte de mim. Quer dizer, literalmente. Na hora do susto acabei deixando parte da minha cauda para trás, contorcendo-se no chão.

Quando a luz voltou e ele finalmente descobriu o “presente” que eu havia deixado, começou a sentir-se culpado. “Não dói”, eu quis dizer, “a culpa também foi minha”, “eu sou ansiosa por natureza, são meus genes pré-históricos”, e eu sentia que o conseguiria consolá-lo com o papo sobre o destino, mas de nada adianta fazer planos quando se é tão tímida quanto eu. Ele finalmente sabia que tinha companhia, e tentou me achar em todos os cantos da sala. Mas a verdade é que meu sistema nervoso não está acostumado às atitudes amigáveis: esconder-me é um impulso mais forte do que qualquer política de boa vizinhança que eu decida seguir.

Foi apenas no dia seguinte, no banheiro, que consegui juntar forças para cruzar a parede enquanto ele escovava os dentes. Ele sorriu para mim, uma montanha de espuma branca escorrendo pelo queixo. “Bom dia, Cotoco. E desculpa por ontem, não vi que você estava no caminho.” Naquele momento eu percebi que havia sido batizada, e que ter um nome era o meu equivalente a ter a chave para o apartamento daquele edifício cinza. Sequer pensei em discutir: Cotoco estava ótimo. Cotoco, a hóspede. Deixe as janelas abertas, por favor: as manhãs me dão fome. Daqui do alto poderei acompanhar a calvície dele, exceto se o processo for muito lento: a coisa toda pode exceder minha expectativa de vida, mas é o tipo de risco que terei de correr. Bem, que sera sera. Inclusive uma cauda nova, daqui a umas três semanas. É sempre bom mudar o visual.

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