Eu viro a cabeça e bato o nariz num
negócio duro, viro para o outro lado e sinto cheiro de hambúrguer.
O moço me oferece um pedaço e de repente lembro que não como há
muitos anos.
Eu tento falar, mas parece que existem
quatro Sansões ainda cabeludos segurando minha cabeça. Entendi, meu
Deus, eu morri! Mas meus olhos gritam “eu quero
hambúrguer sim, moço, obrigada.”
O negócio duro era o vidro do carro.
Minha mão, algemada na porta. O moço é polícia. A maconha na
bolsa deu cadeia? Não, ela tá guardada na outra bolsa, em casa, não
pode ser. Será que eu matei alguém? O moço rompeu o silêncio de
novo.
_ Torce pra velhota retirar a queixa.
Você vai virar ração na ala feminina.
_ Me dá.
_ O que?
_ O hambúrguer. Eu não como há
muitos anos.
Lembrei da velhota. Eu fui ao banco
retirar a parcela do seguro, ela estava na fila e a deixei passar na
minha frente. O neto estava ao lado e me agradeceu. A porra do meu
dinheiro não tinha saído, tava chovendo na minha cabeça o bastante pra fazer inveja à Noé, fome, muita fome.
Paramos na escada, a velhota, o neto e eu. Mas eles, com dinheiro.
Eu, na merda total.
Me ofereceram carona, pegariam um táxi.
Aceitei. O que mais poderia acontecer? Como eu sou inocente, minha
aparência não andava nada apetitosa ultimamente, por que cargas
d'água aquele bonito rapaz faria tanta questão de levar uma semi
morta de fome aos confins da Conchinchina?
Dinheiro, sempre o dinheiro. Maldito
dinheiro, que eu precisava tanto e que fugia mais de mim que o Diabo
da cruz. Engraçada essa expressão. Deveria ser “como Jesus foge
da cruz”, afinal, o crucificado foi ele. Caiu catchup no meu colo.
Ração sabor Hellman's na área, pessoal.
Conversamos bastante no caminho. Gente
agradável, eu nem sabia que essa espécie de gente ainda existia.
Cheguei em casa espirrando, arrancando casaco. O neto bonito abriu a
porta pra eu sair e saiu junto. Pediu meu telefone, mas o telefone da
mesinha da sala é só um souvenir dos antigos moradores. Perguntou se
poderia vir, qualquer hora dessas, para um café. “Por que não?”
Não faço sexo desde o Papa João Paulo. Apartamento 407. Ele me
passou um número de telefone, mas olhando bem o casaco, não deve
ter sobrado muito do papel.
Passei uns bons quarenta minutos dizendo o nome dele em voz alta. Os olhos azuis imaginários mais bonitos do Edifício Cinza. Danilo.
Seu guarda, como é que eu ia saber,
né. Que eu ia parar aqui nesse carro, com essa algema e todo esse
catchup. O mundo me condena e ninguém tem pena, seu guarda.
Naquele dia, depois de tirar as roupas
molhadas, deitei no colchão velho, olhei pro teto e a mancha de mofo
tinha formato de coraçõezinhos. Quais seriam os formatos do teto
mofado da cadeia?
"An innocent man in a living hell.
That's the story of the Hurricane,
But it won't be over till they clear his name
And give him back the time he's done.
Put in a prison cell, but one time he could-a been
The champion of the world"
(DYLAN, Bob - "Hurricane", 1976)
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