7 de março de 2013

[407] Episódio 4: Ártemis & Clyde


Eu viro a cabeça e bato o nariz num negócio duro, viro para o outro lado e sinto cheiro de hambúrguer. O moço me oferece um pedaço e de repente lembro que não como há muitos anos.
Eu tento falar, mas parece que existem quatro Sansões ainda cabeludos segurando minha cabeça. Entendi, meu Deus, eu morri! Mas meus olhos gritam “eu quero hambúrguer sim, moço, obrigada.”

O negócio duro era o vidro do carro. Minha mão, algemada na porta. O moço é polícia. A maconha na bolsa deu cadeia? Não, ela tá guardada na outra bolsa, em casa, não pode ser. Será que eu matei alguém? O moço rompeu o silêncio de novo.
_ Torce pra velhota retirar a queixa. Você vai virar ração na ala feminina.
_ Me dá.
_ O que?
_ O hambúrguer. Eu não como há muitos anos.

Lembrei da velhota. Eu fui ao banco retirar a parcela do seguro, ela estava na fila e a deixei passar na minha frente. O neto estava ao lado e me agradeceu. A porra do meu dinheiro não tinha saído, tava chovendo na minha cabeça o bastante pra fazer inveja à Noé, fome, muita fome. Paramos na escada, a velhota, o neto e eu. Mas eles, com dinheiro. Eu, na merda total.

Me ofereceram carona, pegariam um táxi. Aceitei. O que mais poderia acontecer? Como eu sou inocente, minha aparência não andava nada apetitosa ultimamente, por que cargas d'água aquele bonito rapaz faria tanta questão de levar uma semi morta de fome aos confins da Conchinchina?

Dinheiro, sempre o dinheiro. Maldito dinheiro, que eu precisava tanto e que fugia mais de mim que o Diabo da cruz. Engraçada essa expressão. Deveria ser “como Jesus foge da cruz”, afinal, o crucificado foi ele. Caiu catchup no meu colo. Ração sabor Hellman's na área, pessoal.

Conversamos bastante no caminho. Gente agradável, eu nem sabia que essa espécie de gente ainda existia. Cheguei em casa espirrando, arrancando casaco. O neto bonito abriu a porta pra eu sair e saiu junto. Pediu meu telefone, mas o telefone da mesinha da sala é só um souvenir dos antigos moradores. Perguntou se poderia vir, qualquer hora dessas, para um café. “Por que não?” Não faço sexo desde o Papa João Paulo. Apartamento 407. Ele me passou um número de telefone, mas olhando bem o casaco, não deve ter sobrado muito do papel.

Passei uns bons quarenta minutos dizendo o nome dele em voz alta. Os olhos azuis imaginários mais bonitos do Edifício Cinza. Danilo.

Seu guarda, como é que eu ia saber, né. Que eu ia parar aqui nesse carro, com essa algema e todo esse catchup. O mundo me condena e ninguém tem pena, seu guarda.

Naquele dia, depois de tirar as roupas molhadas, deitei no colchão velho, olhei pro teto e a mancha de mofo tinha formato de coraçõezinhos. Quais seriam os formatos do teto mofado da cadeia?

"An innocent man in a living hell.

That's the story of the Hurricane,

But it won't be over till they clear his name

And give him back the time he's done.

Put in a prison cell, but one time he could-a been

The champion of the world"
(DYLAN, Bob - "Hurricane", 1976)
 

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