4 de fevereiro de 2013

[407] Episódio 3: Um Bife Para Ártemis

Até que o saldo da noite passada não foi assim, tão ruim. Não passei mal, não vomitei como de costume, dormi tão serena e vazia que nem parecia eu, nem parecia essa massa disforme que chamo de corpo, entupido até o ouvido de sorvete. Sonhei uma coisa esquisita e acordei num sobressalto às 6 da manhã (não sei o que é acordar às 6 desde que eu era... sei lá... gente). Sonhei com mamãe sentada na varanda, sua velha cadeira de balanço e o crec-crec que ela fazia. Uma toalha de crochê no colo e engraçado como todas as lembranças que tenho dela têm crochê no meio. Eu era pequena ainda e ela me dava uns trocadinhos pra comprar linha, agulha, mas com ares de general que comandava um pelotão. Uma grande tarefa pra uma menina, eu geralmente não errava suas encomendas e se errava, noites e noites de desespero me esperavam. Eu precisava muito agradar alguém.

Noutra noite, o sonho tinha sido ainda mais esquisito. Eu recebia uma ligação e me diziam que ela tinha morrido. Corria, apavorada, pela casa grande (no sonho, eu ainda morava na minha verdadeira casa). Chegava na clínica e ela estava lá, rosto frio de sempre, congelado, ainda sem lembrar de mim. Acordei chorando, no colchão do apartamento. Se estava lúcida ao chegar, o tempo se incumbia de me transformar numa doida varrida. Dêem-me dinheiro, senhores, rasgarei-o, só não contem ao seu Lobato, o síndico perverso.

A vida é louca, o mundo é triste:
vale a pena matar-se por isso?
Nem por ninguém!
Só se deve morrer de puro amor!
(Mário Quintana)

Mamãe está internada numa clínica psiquiátrica muito bonitinha, tem umas flores na frente. A moça da recepção é sorridente e dou meu rim na pracinha se ela não é interna daquela lugar, cumprindo carga de trabalho em troca da liberdade. Ninguém sorri num lugar como estes. Ninguém gosta de inferno e o hospício (às favas as convenções sociais, doido mora em hospício, clínica de repouso é a puta que nos pariu) é o maior inferno que existe. Eu olho mamãe naquela cadeira, rosto impassível, de quem, em algum momento, preferiu criar um mundo imaginário a enfrentar o mundo real. Toda uma vida, uma história, fora a minha vida, a minha história, se esvaindo naquela camisola horrenda e nos comprimidinhos de gardenal. Ficaram para sempre comigo as lembranças das noites em claro, as malinhas de viagem, ora dormindo na casa de um, ora dormindo na casa de outro, depois que a família Veiga veio tomar a casa. Maldita família Veiga, sortuda família Veiga, levaram nossa história, nossas toalhinhas de crochê. Eu tenho sonhos lindos, atirando no Sr. Veiga, jogando pedra no Sr. Veiga, noite dessas eu batia na cara gorda dele até que um dos seus olhos saltava e batia na parede.

Hoje terei um bom dia, tenho fé. Recebo a primeira parcela do seguro desemprego e ajeito minha vida, adeus dieta pobre, adeus banho gelado, adeus pastel do china. Tal qual Elias, sem Lucilia, vou gritar ao mundo, sorrindo “Faz um bifão pra mim!“*

Hoje também faço aniversário de sem-teto. Há exatos 8 anos, eu deixava minha casa, os batentes daquelas portas, o cheiro de café fresco, o crec-crec da velha cadeira. Depois de alguns meses, mamãe não se aguentou e virou uma outra gente, que batia nas coisas e corria com facas atrás de mim. Eu não gostava dessa fase Dona Maria Louca. Levaram mamãe pra clínica da moça sorridente e não tiraram mais. Eu varei de casa em casa, pensão em pensão, todos os tipos de papais e mamães e queridinha, você é muito bonita, vamos conversar melhor ali no meu quarto. Até chegar nessa mesinha solitária onde escrevo agora. O velho desgraçado caiu no mundo. Quando o dinheiro da venda da casa acabar, ele volta. Tenho deliciosos sonhos com ele. Geralmente, seus olhos também se soltam e batem na parede.


“Here I am waiting for a better day
A second chance
A little luck to come my way
A hope to dream a hope that I can sleep again
And wake in the world with a clear conscience and clean hands
'cause all that you have is your soul“

(All That You Have Is Your Soul - Tracy Chapman)

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* referente à crônica “Relato de Ocorrência Em Que Qualquer Semelhança Não É Mera Coincidência“, de Rubens Fonseca.





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