1 de fevereiro de 2013

[101] Episódio 2: Eu velhoaro, Tu velhoaras, Nós velhoaramos


- Acorde filho, hoje é seu grande dia. Acorde logo rapaz, hoje você passará de menino para homem. Acorde meu filho, meu grande filho.

Os sons da voz rouca do pai fazem com que o jovem rapaz acorde. Seus olhos se abrem e sua primeira imagem é desse senhor, parado à sua frente como uma estátua de praça pública, alta velha carregando no lugar do rosto uma carranca, uma carranca de olhar sério e penetrante, que ao mesmo tempo assusta e fascina o observador; suas roupas como não poderiam deixar de ser, compunham o ar pesado e solene do grande momento, ao invés do costumeiro pijama branco com listras que seu pai usava todos os domingos, a roupa era a que ele costuma usar para momentos de grande importância: o terno.

O terno verde musgo bem escuro, tão escuro quanto suas intenções, o sapato preto bem lustrado, e o quepe também verde, mas não tão escuro quanto o restante do terno.

O garoto se levanta e vai com ânimo ao banheiro. Lava o rosto, se olha, se vê, se contempla  e se felicita por fazer o que é certo, por dar orgulho ao pai, por ser motivo de orgulho para a família, por ser orgulho para si próprio, por ser coragem, por ser homem.  Célio, este jovem rapaz, se arruma, põe sua melhor roupa, o terno azul escuro, passado e engomado esticado sobre a cama. Ao parar ao lado da porta, sua última olhada ao redor do quarto, ele caminha até a janela e abre as cortinas.

O sol da manhã avança sobre seus olhos, fazendo-os se espremerem; ao abrir os olhos, a rua iluminada, com uma dezena de jovens deixando suas casas, todos com seus ternos bem alinhados, e seus pais ao lado, como que numa procissão, bandeiras em punho, punhos cerrados levantam-se, as mãos, as mãos dos vizinhos se apertam, os corações apertados batem violentamente, as mãos voltam frias e guardam o medo e a esperança , eis que a boca exprime os primeiros desejos de boa sorte, os primeiros beijos, as eternas despedidas. Ao virar-se de sua contemplação, o rapaz, o jovem rapaz, observa o caminhar da luz ao preencher seu quarto, ao iluminar o terno, o meio termo entre coragem e temor.   

Veste-se, caminha até a sala, e para diante do pai sentado que observa a rua e que leva à boca um charuto preto, pesado e fumacento, a mãe vindo lentamente da cozinha trazendo  pequenos e suculentos pedaços de Knodel  e muitas lágrimas para o filho que partia. Duas de suas irmãs sentadas na sala paravam para ver o velho irmão que em alguns minutos partiria.
Acompanhado dos pais Célio sai pela rua e, assim como seus amigos, recebe os cumprimentos e desejos de boa sorte dos vizinhos, dos amigos e de todos os demais moradores da Cidade, que parou tudo para acompanhar a saída dos jovens combatentes, que atravessariam o oceano deixando suas casas para trás, para lutar, lutar pela liberdade, pela honra e por seu país.

Chegando ao porto, o jovem rapaz pega a longa fila, mas nunca só, sempre acompanhado de seus pais orgulhosos. Chegando à ponta da fila, vê o Primeiro e Segundos-tenente da brigada recolhendo as assinaturas dos combatentes, assina seu nome na lista de combatentes que faziam parte do primeiro escalão que partiria para a Itália; saindo do armazém preparado para receber os combatentes a primeira imagem ao fundo era a do grande e imponente General Man, o grande homem que levaria todos aqueles meninos para se tornarem homens, demonstrando sua honra e coragem. Célio vira-se para seus pais e dá um último sorriso, abraça-os e segue em direção a grande rampa, que leva a entrada do navio; no topo do navio, a imagem do grande homem que comandaria o seu escalão, Zenóbio da Costa, agora seu novo general, seu novo pai.

Os olhos se enchem de lágrimas, o jovem rapaz vê seu país ficando para trás, eis que a luz do céu fica cada vez mais forte e forte e ofusca seus olhos, incomoda seus olhos, dói e Célio acorda com a luz forte do sol que vem da janela; é cedo, o velho senhor dormira na poltrona da sala, e seu sono pesado, de sonhos leves, não o deixou acordar.

Saxofone tenor

Célio se levanta sentindo dores, o velho sente dores, dores fortes que doem em todos os cantos de seu corpo, incluído suas costas cansadas. Ele caminha até o banheiro, toma um banho, escova os dentes, penteia o que lhe restou de cabelos brancos.
- Fios inúteis, não entenderam ainda que deveriam ficar na cabeça e não no ralo? Voltem para o seu lugar ou nuca mais os aceitarei de volta... Tudo bem, não os quero de volta mesmo, fios desobedientes. Cada fio a menos, uma preocupação a menos, menos tempo, menos vida, quando não houver mais fios, não haverá mais vida, nem sequer tempo; pois meu tempo já terá passado, e logo eu serei passado.

O velho caminha pelo apartamento ainda pouco iluminado, abre janelas e cortinas, da espaço ao vento e luz, mas tenta evitar os gritos das crianças e o pó da rua.
- Obrigado, querida rua, sua sutileza se mede com pó, mas pó eu já tenho bastante; afinal quem é pó como poderá tornar-se pó um dia? E de que me adianta reclamar vou sair, vou velhoarar com os velhos velhoaradores.

O velho cruza a sala, passando com cuidado pelo tapete que sua esposa mandara trazer do Iraque, lembrança do período de fartura de sua família, e que seguindo ainda após todos esses anos de infinitos avisos o velho continuava a tomar cuidado com a peça rara e cara de sua amada esposazinha.

- Cuidado! Não pise assim, cuidado! Ainda me lembro da unglückliche falando do persa, persa que por sinal eu piso, pois, tapete é, fosse gato eu chutaria o bichano para longe, assim como a bunda da dona.
O velho se arrumou, bem alinhado, com humor detestável e foi velhoarar.

 Trompa, 2 flautins e celesta

Sentado sozinho em um canto da praça, enquanto seus companheiros não chegavam, Célio aproveita para observar a rotina lenta da praça; repentinamente, ele vê se aproximando com um caminhar perdido e preguiçoso o jovem o rapaz da padaria, que viria e o saudaria educadamente, mas lhe chamaria pelo nome errado, como sempre.

- Seu Zélio. O senhor por aqui, seu Zélio, o que faz o senhor com esse traje de gala, sentado aqui sozinho na praça seu Zélio, oia, só o senhor seu Zélio; aliás eu tenho que contar pro senhor to pensando em tá voltando a tá estudando de tanto que o senhor fica falando que eu tenho que tá procurando uma escola pra tá aprendendo mais. O que o senhor tá fazendo que num passo na padoca.

- Sim, meu jovem, estude, sabe, que você tá precisando; todos nós precisamos de conhecimento e outros ainda precisam também de paciência. Pensei em passar na padaria, mas pensei em vir mais cedo para a praça e aproveitar o silêncio, enquanto os velhos não chegam, por isso estou aqui velhoarando solitariamente.

- Entendo seu Zélio, curioso isso que vocês fazem.

- Sim, pode ser chamado de curioso, não fosse trágico.

- Trágico?

- Sim, velhoaramos pois não há mais vida a se viver, meu rapaz, e nesta fase da vida, os medos e desgostos nos afligem como nunca antes na vida.

- E o senhor tem tanto motivo pra desgostar da vida assim seu Zélio.

- Sim, todos temos, mas conforme a idade chega o que se percebe é um aumento substancial do peso que os sentimentos negativos e as más experiências exercem sobre as costas cansadas dos velhos. Neste momento vemos as tristezas da vida não mais como algo a ser superado, não há tempo, pois não é tempo de superação, vemos o conformismo como saída no qual se apoiam todos nossos fracassos e, ainda para mim, que sofri para além do que eu mesmo poderia ter me causado, o peso se lança ainda pior, é viver como Atlas só que ao invés do céu, levo às costas o peso do inferno de uma vida infeliz; nesta vida onde até meus dentes me mordem.

- Que chato seu Zélio. Seu Zélio? Seu Zélio? Tudo bem com o senhor?

Rápido como o apagar da chama de uma vela, escuridão toma conta da visão de Célio...



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