22 de janeiro de 2013

[204] O Cretino




As últimas palavras de Cristina antes de fechar a porta. Eu teria preferido um “se cuida”, “boa sorte” ou ainda um “quem sabe um dia a gente pode sair para um café, para conversarmos sobre trivialidades, sabe como é, a vida é tão curta para guardarmos tantas mágoas...”. Em um cenário ideal o que eu gostaria mesmo de ouvir seria uma declaração da impossibilidade do nosso amor abafada pelas lágrimas, um “vou sentir saudades”, mesmo que não fosse verdade (e não era) - mas faria bem à minha auto-estima de qualquer forma. Eu me declaro culpado do crime de cultivo, posse e tráfico de melodrama - me processem.


Naquela noite Cristina estava rouca, mas já havia parado de chorar há muito. Olhou para trás uma última vez - decerto para se certificar de que eu havia me cristalizado para sempre no formato “Ex-Namorado Ruim que Vai Me Ensinar Lições Preciosas Sobre Como Não Proceder em Meus Próximos Relacionamentos” e sentenciou: Cretino - e o pior é que eu sabia desde o início. Você é um cretino.

Meus primeiros momentos de solidão foram gastos na experimentação da sonoridade do par que fomos por quase dois anos e meio, agora desfeito: Cristina e Cretino, Cretino e Cristina. Soava bem, seria uma piada naquelas festas da escola dela que eu tanto odiava. Depois que me dei conta de que jamais seria convidado para outra confraternização com aqueles professores anestesiados, sabia que precisava me livrar ou justificar o epíteto com algo a mais do que a cota de pequenas maldades que adubam um relacionamento: recorri ao dicionário para ver se conseguia extrair algum sentido que me salvasse. O resultado da minha averiguação não foi muito promissor:

Cretino: adj. e s.m. Que ou aquele que, por deficiência mental ou orgânica, padece de incapacidade mental ou moral; retardado ou débil mental. Fig. Pessoa estúpida, imbecil, idiota; debiloide.

Não me dei por satisfeito, precisava ir além. Talvez a coisa toda não estivesse tão feia quanto parecia. O problema com os dicionários é o espírito pragmático que impede a elucubração: não há palavra simples o suficiente em qualquer língua conhecida para poder ser representada plenamente em uma descrição de três linhas, acredite em mim. Usei a primeira madrugada sem Cristina para aprofundar meus conhecimentos a respeito do termo. Descobri que há uma doença conhecida como cretinismo: uma debilidade mental atribuída a uma disfunção da tireoide, que não produz um hormônio chamado tiroxina, responsável pelo amadurecimento cerebral do feto no útero. Estou aqui escrevendo essas notas, correto? Não sou um problema médico, querida, embora você tenha marcado uma consulta para mim com aquele seu amigo psiquiatra que se achava Dono e Senhor da Razão.

Tampouco sou um problema religioso. Uma abordagem morfológica me mostrou que o termo cretino provém de um termo do dialeto franco-provençal “chretién”, que significava cristão. O sentido que damos hoje à palavra deriva do costume de usar a expressão “pobre cristão” significando louco, inocente com relação aos débeis mentais. Parei de ir à Igreja pouco depois da minha primeira comunhão. Abracei o zen durante a adolescência e até que a faculdade terminasse. Hoje me considero apenas um agnóstico com inclinações científicas e tendências místicas - descrição que Cristina considerava absurda, e para a qual costumava emendar a advertência de que eu precisaria encontrar outro uso para a Navalha de Occan que não fosse desenhar meu próprio cavanhaque.

O dia nasceu antes quando eu já estava me dando por vencido. Apenas ao me arrastar até a cama - a cama que jamais partilharíamos novamente - e fechar os olhos - menos para dormir do que para sentir melhor o cheiro dela - foi que a resposta veio, gloriosa. Como Eu não havia pensado nisso oito horas antes? Cretino poderia, afinal, ser um gentílico. Está certo que Cristina poderia ter utilizado a forma mais comum mas, dentre todos os motivos que fizeram com que eu me apaixonasse por ela, sem dúvida o mais importante de todos é o fato de que Cristina poderia ser qualquer coisa, não era óbvia. Ela simplesmente substituiu o sufixo -ense por -ino e fez de mim um cidadão de Creta.
Peguei o telefone para enviar, sonolento, a última mensagem de texto que ela receberia de mim - não que eu tencionasse cortar a comunicação, mas acabei descobrindo pouco depois que ela mudou de número e que não, eu não estava incluído no pacote de dados da operadora nova - palavras do pai dela, não minhas. Naquela manhã, no entanto, o número ainda era o mesmo, e digitei:

Tem toda razão. Eu sou mesmo um cretino. Um beijo.

Dormi até hora do almoço - que consistiu, na verdade, no conteúdo de nosso último jantar, intocado em um Tupperware, já que começamos a brigar antes que pudéssemos colocar a torta no microondas. Resolvi naquela tarde me dedicar à interpretação de antigos historiadores e topografias de labirintos. Eu precisava descobrir, afinal, que tipo de cretino eu era; homem ou quimera, rei, herói ou monstro.

Estabeleci um método de trabalho para empreender minhas pesquisas em vez de começar a embalar minha coleção de canecas e meus DVDs do Hitchcock. Teria dado certo, não fosse a insistência para que eu achasse um novo lugar para morar, que interrompeu o curso natural dos meus pensamentos. Um mês e três dias depois, após minha definitiva mudança de apartamento, retomo oficialmente o fio da pesquisa., ainda que precise admitir que, até o presente momento, os resultados ainda são inconclusivos.

Então, por hora, basta dizer que sou um cretino. A noite é longa, o resto se vê depois.  

Um comentário:

  1. da próxima vez que me xingarem, usarei o método Jorge de busca por significação mais amena, com certeza.

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