12 de abril de 2014

[201] Último Episódio: De homens e histórias

       
        - Vão demolir amanhã, ouvi dizer. Se não demolissem, cairia por si só. É bom mesmo que o façam.
Da janela do restaurante modesto, de cores sóbrias e comida de uma simplicidade quase elegante, via-se a já tão reduzida praça, com dois banquinhos metálicos onde a ferrugem crescia feito um fungo. Duas ruas consideravelmente largas eram preenchidas por carros sempre mais brilhantes e potencialmente mais velozes – detidos, porém, pelo tráfego asmático – e depois delas, a pequena mancha de uma ruína cinza, volteada agora por outros prédios, tanto mais altos quanto mais bonitos. Como um idoso, em sua fragilidade, cercado por manifestações monumentais de um futuro cada vez mais branco e seco cujo tempo existência ainda não chegara nem à metade. 
- É uma pena. Prometo que deixarei de insistir em almoçar aqui a partir da próxima semana. O que mais gostava era apenas dar uma olhada nesse prédio porque eu sabia que ele não poderia ficar aqui sempre, não é? 
         As maçãs da face eram descoloridas por uma maquiagem formal e as rugas já lhe reivindicavam o direito de lhe tirar o aspecto juvenil que outrora se fazia tão evidente. Os cabelos, eles sim, continuavam ruivos e brilhantes, ainda que amarrados em uma espécie de nó às costas de sua cabeça. 
        - Nunca me falou com mais detalhes sobre esse tal padre do prédio velho, Hermínia. Mas deve ter sido um daqueles homens que tiram a gente do eixo pra que você pense nele até hoje, imagino. 
Ela tornara-se uma daquelas mulheres de negócios, com seus terninhos risca de giz e sapatos cujo salto faz deixa um rastro de toc-toc que faz os homens atentarem ao desfile. Era agora mais familiarizada com planilhas, números e códigos do que com festas. Não bebia mais. 
- Já lhe contei quase tudo que pude, não o conheci por muito tempo. Despedi-me dele no dia em que lhe conheci. Era um dia importante pra nós dois: o meu primeiro dia de trabalho e o primeiro dia dele, assim, solto no mundo. Espero que o destino dele tenha sido mais excitante que o meu. 
- E nunca mais se falaram depois?
- Bom, tivemos precisamente duas ligações e meia dúzia de correspondência. Ele nunca me disse o que planejava fazer da vida ou onde estava vivendo. Deixei-o na rodoviária antes que ele comprasse seu bilhete e ele olhava o painel de possíveis destinos como quem escolhe um sanduíche. Não imaginava que ele fosse sumir assim. Perguntei-me durante muito tempo se ele levou alguma mágoa de mim ou se podia ter insistido que ele ficasse por aqui mais um tempo antes de decidir, de fato, o que deveria fazer da vida. Ah, eu pensei nele durante muito tempo...
O Edifício Cinza apresentava-se aos olhos de Hermínia como uma lápide, um sinal de que um dia ela teve uma ligação com Otávio, algo que já aconteceu e brevemente encontrou encerramento. E todo mundo – sabemos bem – perde um dia ou dois em meio à melancolia de uma memória longínqua que emerge sem motivo aparente.
Onde estaria Otávio? Metido num terno, tirando o sapato para gozar de uns bons momentos de relaxamento enquanto sua esposa lhe prepara o jantar. Ou talvez com uma garrafa de vinho barato metida por debaixo do braço, recoberto de crostas de imundície amaldiçoando os passantes de uma avenida movimentada. Quem sabe não regressou à vida religiosa e agora é um padre maduro que lembra da aventura nesta Cidade e solta uma risada indulgente com seus próprios erros. Hermínia formulara muitas hipóteses no decorrer dos anos. Enquanto o fazia, conheceu vários homens e casou com dois deles, em momentos diferentes e permanecia ainda com o último, descobriu-se estéril e sentiu-se frustrada por não poder ter um bebê, anos mais tarde adotou um menininho de dois anos com dois grandes olhos de ameixa preta que lhe conquistaram, teve doenças e recuperações, apenas um emprego, no qual se tornara realmente competente e menos orgulhosa do que poderia ser. Enfim, distraiu-se em todas as distrações que, em seu conjunto, forma a vida cotidiana e amarela de todas as pessoas. 
         Pouco importa, de fato, onde está Otávio e se ainda vive. O que Hermínia descobrira, apesar de nunca falar, é que isto realmente pouco importa. Seja qualquer um o rumo de uma vida qualquer nesse Mundo, sob o cinza do concreto ou sob o espectro de cores mais acalentador e dócil, todos viram histórias. A única certeza que se tem sobre Otávio, o ex-padre sem rumo, é que agora é uma história, que pode passar em muitas bocas, em muitas versões que até provavelmente se contradizem, mas são todas verdadeiras. Uma breve história, que brilha feito fagulha – por um instante apenas -  na imensidão do tempo e um dia não será mais contada, nem será lembrada. Uma tumba que habita o cemitério mental de alguns outros humanos, porque todos carregam um cemitério na cabeça, um cemitério de pessoas que viraram histórias. 
        Mais do que tudo: Otávio é um ser humano. E a forma mais autêntica de um ser humano é, sem dúvida alguma, a história. 



1 de fevereiro de 2014

[201] Oitavo Episódio: Entre o antes e o depois


cumulou-se uma pilha de correspondência na pequena sala do (ainda) meu apartamento no Edifício Cinza. Algumas abertas e não lidas, algumas abertas e lidas com atenção, outras que já jaziam na sacola de mercado dentro da lixeira. Livrei-me de tudo aquilo que remetia à vida religiosa: as imagens espalhadas pela casa, alguns volumes da Liturgia das Horas e outras tantas coisas mais. Joguei-as pelo vão de lixo no meu andar e, com algum prazer e uma dose de persistente receio, pude ouvir as imagens quebrando dentro do saco preto bem amarrado. “Se eu morrer esquartejado e meus pedaços forem encontrados em sacolas, dirão que foi castigo” – pensei sorrindo e dando de ombros. 

No grupo das cartas abertas e lidas, estava uma de minha irmã, Lúcia:
“agora vejo que tive de fato razão quando nunca chamei-lhe de frei ou de padre, seja lá o que for. Nosso pai, certamente, sentiria grande prazer se ainda estivesse vivo. Bem, talvez o fato de que ele não esteja mais aqui seja um adianto pra você rever sua irmã e sua mãe, que tanto sentiram sua falta. Mamãe está esperançosa, nunca a vi feliz assim desde o dia em que partiu. É irônico que alguém tenha capacidade de acreditar que deus está em um pedaço de pão e que pode-se comê-lo não acredite no amor de sua família.”

Havia também outra, de Frei Marcos, uma espécie de mentor meu durante os tempo de seminarista:
            “Eu havia alertado, caro Otávio, que a Cidade é um antro de promiscuidade. É uma pena que você tenha sucumbido diante disso, mas ainda esforço-me para ver o que é possível fazer em seu favor.”

 Ele não sabia que eu não estava interessado neste tipo de ajuda. O que mais me preocupava era de cunho estritamente prático: o que fazer para sobreviver? Como me encaixar nesta dinâmica secular e ganhar dinheiro? Eu não precisava de muito para sobreviver, porém não sabia fazer muito mais que homilias, atender confissões e capinar.

            - Já se livrou do clesma e das imagens, agora só precisa se livrar de alguns maus hábitos, como acordar tão cedo.
            Mesmo recém-acordada pelo meu barulho, ela já caminhava com graça, quase dançava e seus seios, livres, mexiam-se delicadamente ao comando de suas longas e brancas pernas; tinha o charme e a leveza de um gato de subúrbio. Não estava acostumado a uma mulher próxima de mim e era sublime vê-la vestida apenas pelas listras de raios de sol que atravessavam as persianas. Mais urgente que decidir o que fazer da vida era juntar meu corpo ao dela e sentir um gozo que Deus jamais proporcianaria.

28 de janeiro de 2014

[205] Episódio 3: O gato falante


Corri o olhar pela sala, a tela do monitor iluminava precariamente o cômodo. Meu pai tem razão, isso aqui está um lixo. Preciso tirar um tempo para desencaixotar minhas revistas, jornais e CDs. Por hora, acho que levarei todas as caixas para um dos quartos, e assim deixo a sala livre.

Dei mais uma tragada no bagulho, eu precisava relaxar. Maria Joana era criativa, extrovertida e tinha o poder quase sobrenatural de me relaxar – talvez tanto quanto Cátia. Mas algumas coisas eu só conseguia fazer com ela: veja só a logo da clínica de fisioterapia no monitor. Ficou excelente!

Gargalhei e dei outra tragada. Me apresentaram a Joana no ensino médio, alguns amigos já a conheciam há mais tempo, e de lá para cá não nos separamos mais. Aliás, eu acho que a Cátia, na verdade, deve ter me largado a primeira vez por causa dela.

Puta que pariu! Félix saltou para uma das caixas e caiu todo esparramado lá dentro! Gargalhei e só traguei outra vez quando pude me recuperar do riso. Ergui o cigarro à frente do rosto. Estava quase acabando, feito meu estoque. Eu precisava comprar mais com o Bolinha.

– Gato idiota! – disse ainda rindo. Félix ergueu a cabeça de dentro da caixa e me encarou.

– Vai se foder, seu babaca... – retrucou. Chorei de tanto rir.

– Deu para falar agora, seu viado?

– Quando um babaca se entope de maconha, até gato fala... – disse ele, sentando-se. Lambeu uma pata e passou na orelha.

– E o que você tem a ver com isso?

– Você me prometeu, seu canalha! – retrucou me encarando novamente. Senti um golpe no rosto, mas não me virei.

– Você fala feito uma mocinha. Parece a Cátia... – disse para fazer-lhe implicância, gargalhando.

– Para com isso e olha para mim! – esbravejou Félix saltando da caixa e se aproximando. Senti outro golpe no rosto. – Você comprou mais jornais? Está parecendo um mendigo no meio disso tudo... – acrescentou em tom grave. Outro golpe: um tapa seco, estalado.

– Ih, olha só Félix, falando em Cátia... – disse ainda sorrindo, virando-me na direção do golpe.

– Por que está fazendo isso? Por quê? – perguntou Cátia com os olhos marejados. Eu não conseguia parar de rir, apesar de achar aquilo muito triste. Por que Cátia estava chorando?

– Que saudades, meu bem... Demorou tanto a vir, pensei que tinha me abandonado outra vez... – disse tentando conter o sorriso que se desfazia com dificuldade. Félix não disse mais nada, virou-nos as costas e pulou para uma das caixas, deitando confortavelmente.

– Márcio isso precisa parar! Você vai acabar se matando! – sussurrou tristemente abraçando minha cabeça e colando ao seu peito. Minhas lágrimas vieram e não pude segurar.

– Meu pai esteve aqui... disse que minha mãe sente minha falta, chora todos os dias... – balbuciei fungando.

– E você aí se matando de fumar maconha... – retrucou acariciando meus cabelos.

– Pediu para eu voltar para casa...

– E você vai voltar?

– Minha casa agora é aqui, Cátia. – respondi ainda fungando.

– Isso está longe de ser chamado de casa. – disse levantando. Caminhou com dificuldade entre as caixas com minhas coleções de revistas e jornais. – Você tem comida?

– Está com fome? – perguntei levantando-me e sorrindo, a vista ainda embaçada pelas lágrimas.

– Não, estou apenas preocupada com você...  – respondeu da cozinha, ao bater a porta do refrigerador. Caminhei a seu encontro, ela retornava fechando o zíper da bolsa. – Eu vou sair para comprar alguma coisa para almoçarmos.

– Mas eu comprei uma lasanha esses dias... – comentei quando ela cruzou o caminho comigo.

– Eu vou ao mercado, meu bem... fique aqui e jogue isso fora, por favor... – disse ignorando meu comentário sobre a lasanha e segurando minha mão com o resto do bagulho com autoridade. Me senti um garotinho. Acompanhei à distância ela se dirigir até a porta, Cátia deu uma meia parada, suspirou e veio ao meu encontro. – Porque você faz isso comigo, seu cachorro? – reclamou batendo em meu peito e me beijando em seguida.

– Ora, faço o quê? – perguntei, confuso, enquanto a beijava.

– Você não me ama. Não ama a ninguém, apenas a si mesmo... – sussurrou, enquanto tirava minha camisa, passando as mãos em meu peito logo após.

– Eu te amo... – balbuciei, enquanto Cátia retirava a camiseta de suplex com habilidade, deixando os seios nus.

– Mentiroso! – esbravejou me desferindo um tapa. Meu rosto ardeu e os olhos encheram-se de lágrimas novamente. 

– Você enlouqueceu? – esbravejei segurando em seus punhos com vigor. Seus olhos também estavam marejados.

– O que foi? Vai me bater agora, seu covarde? – debochou com aqueles olhos brilhantes e desafiadores. Ela sabia que eu não era capaz de lhe fazer qualquer mal. Eu afrouxei as mãos e ela avançou sobre mim novamente, beijando-me com avidez.

– Você sabe que eu não sou capaz disso, não é mesmo? – respondi entre seus beijos.

– Patife... você ama mais o bagulho do que a mim... – reclamou enquanto desabotoava minha calça.

– Isso é mentira! – murmurei, mas ela parecia não me ouvir.

– Eu quero você por inteiro, não quero dividi-lo com ninguém, nem mesmo com um vício... – acrescentou, baixando sua calça com dificuldade. Abraçou-me em seguida, colando os diminutos seios em meu peito e beijei-a com sofreguidão.

– Você fala demais... – observei segurando fortemente em sua cintura e deitando-a entre as caixas.

– Seu covarde! – vociferou socando meu ombro esquerdo, abrindo as pernas para que eu me encaixasse no meio delas.

– Cala a boca! – gritei esbofeteando-a, algumas lágrimas rolaram rosto abaixo, mas ela não parecia insatisfeita. Afastei a calcinha com os dedos e penetrei-a fortemente, batendo o púbis com violência em seus quadris. Cátia gemia com prazer, mordendo o lábio inferior e me conduzindo para si, segurando em minha bunda. A mulata franziu o cenho, seus suspiros tornaram-se agudíssimos, um tom soprano melancólico que se perdia no orgasmo.

Continuei meus movimentos com mais vigor ainda, o suor escorria-me pela testa alcançando e queimando as vistas. Não consegui gozar, por mais que tentasse e por maior que fosse a paciência de Cátia. Deitei ofegante e exausto ao seu lado, ela sentou abraçando as pernas e me encarou.

– Fuma mais maconha, seu babaca... – sussurrou tentando controlar a respiração.

– Eu também te amo... – murmurei com deboche.

– Se eu não te amasse, não estaria aqui, não acha? – disse baixando o tronco para beijar-me a boca.

– Não sei. Talvez esteja impressionada com a minha cultura... – retruquei, sorrindo. Ela não respondeu. Levantou, espreguiçou-se e catou as roupas no chão para se vestir. – Onde você vai?

– Vou comprar alguma coisa para a gente almoçar... – respondeu dando uma última reboladinha para por a calça justa.

– Está com fome?

– Estou. – respondeu colocando a camiseta e arrumando os cabelos. Calçou as sapatilhas, foi ao banheiro e lavou o rosto. Sentei-me e fiquei observando o membro perder massa, tombando de lado. Cátia voltou e então me levantei, apoiando um joelho no chão.

– Não demora muito... – disse em tom de súplica. Ela pegou a bolsa e se aproximou sorrindo.

– Eu já volto... – tranquilizou-me e beijou minha boca. Teve um sobressalto quando lhe dei um tapa no traseiro, a caminho da saída.

– Eu te amo. – disse quando ela abriu a porta. Ela sorriu novamente, parada ao umbral.

– Também te amo... – respondeu e saiu.

Suspirei. Talvez ela tivesse razão, eu devia amar mais a maconha do que a ela, e mais do que a mim mesmo, isso precisava parar. Suspirei novamente e segui até a cozinha, estava morrendo de sede. Abri a geladeira e corri o olhar para buscar a garrafa d’água, mas a ausência do meu pacotinho de maconha chamou-me a atenção.
 Cátia, sua filha da puta!murmurei entre os dentes. A piranhazinha havia levado o resto da maconha que eu tinha em sua bolsa! Suspirei e fechei o refrigerador, ouvi um miado fininho e virei-me em sua direção. Félix estava sentando junto à porta da cozinha, fitando-me com aqueles olhos amarelos e curiosos. Miou outra vez. – Gato idiota...

14 de janeiro de 2014

[201] Sétimo Episódio: O que não tem conserto


Não nos foi concedido o domínio sobre nós, disto ninguém há de discordar. Quanto a mim, o que mais me aflige nessa vida é a distância sempre crescente entre intenção e ato, um descompasso que, ao ritmado comando do tempo, nos transforma naquilo que outrora detestávamos. O devir é sempre uma experiência pior do que se imaginara.
                Uma atmosfera de tensão rondava-me pelas últimas semanas: o rosto de D. Wilma parecia estar mais fechado do que de costume, mas também transmitir um abatimento profundo e sincero; um quê de censura saltava dos olhares dos meus paroquianos e grudava-se em minha fronte como a lanterna do sentinela que flagra um pretenso fugitivo. Senti-me injustiçado: se alguma vez desgarrei-me – e consigo mesmo admiti-lo – já me muni do firme propósito de emendar-me e neste caminho trilhei desde então. Mas as pessoas querem perfeição, enfileiram-se nos bancos da matriz como consumidores que pagam pela personificação da sabedoria lhes falando do púlpito, dando-lhes Deus transubstanciado em pão e ouvindo suas mazelas, aconselhando-os. Ninguém procurava confissão há dias, era o prelúdio de que algo estava acontecendo.
                Ao fim de uma Missa de terça-feira, meus dois coroinhas saíram precipitada e coordenadamente da sacristia obedecendo a um comando da cabeça demasiado grande de Wilma. Trazia na mão um grande envelope.
                - Não pense que tenho algum prazer em fazer isso, Frei. Se todos fossem compreensivos como eu, talvez não houvesse necessidade de se chegar a este extremo – mas em seus olhos, dançavam fagulhas de satisfação a despeito de seu discurso.
                Dispôs então vários itens retirados do envelope sobre a imponente mesa de mogno, que parecia especialmente lustrada para aquela ocasião. Papa e Bispo observavam, de suas molduras douradas, nossos movimentos. Cristo jazia na cruz, como sempre, entediado: certamente não lhe entretinham eventos tão banais.
                O inventário dos itens dispostos: uma carta de Dom Juarez, superior geral de minha Ordem de origem, atualmente alocado em Roma, que me concedera permissão para experimentar a vida diocesana para sanar minhas dúvidas vocacionais, provavelmente ordenava-me o regresso; uma carta do Conselho Paroquial, com a assinatura de cada uma das ilustres pessoas que o compunham e gozavam de prestígio diferenciado naquela comunidade; algo semelhante a um abaixo-assinado, que parecera-me ridículo; um envelope alvo, bem lacrado, com a palavra DOSSIÊ bem destacada em vermelho.
                Abri-o. Algumas páginas escritas a mão, com várias letras distintas, descreviam minha vida noturna – mais exagerada, obviamente, do que ela realmente fora enquanto existiu. Mas a parte maior do entretenimento eram as fotos, em quantidade econômica de pixels. Eu, com um cigarro na boca andando em alguma ruela. Eu, com um cigarro na boca à janela do meu apartamento. Eu, com uma taça de vinho em uma mesa de bar. Hermínia. Senti vontade de chorar e meu coração estava humilhado, teria pedido piedade se pudesse esperar algum resultado de uma atitude deste tipo. Na carta de meu superior, estava destacado o seguinte trecho da Regra de Santo Agostinho:

                “Assim também, o que fixa o olhar numa mulher e se deleita em ser olhado por ela não deve supor que não é visto por ninguém quando faz isto; certamente que é visto e por aqueles que ele nem imagina que possam ver. Porém, mesmo que permaneça oculto e não seja visto por ninguém, que dirá d’Aquele que conhece o coração de cada pessoa e a quem nada se pode ocultar? Ou se pode crer que não vê porque o faz com tanto maior paciência quanto maior é sua sabedoria? Tema, pois o homem consagrado desagradar Aquele , para que não queira agradar pecaminosamente uma mulher. E para que não deseje olhar com malícia uma mulher, pense que o Senhor tudo vê. Pois é por isto que se nos recomenda o temor, segundo está escrito: 'Abominável é diante do Senhor aquele que fixa o olhar'".

                - Devo ainda alguma obrigação com esta paróquia, D. Wilma? Imagino que esteja vindo alguém para substituir-me. Se não sou mais necessário, gostaria de ir pra casa e ler com calma todos estes documentos e ponderar sobre o que fazer neste futuro breve.
                Ela assentiu com os olhos marejados, apertou forte uma das minhas mãos e deixou dentro um pingente de Nossa Senhora das Dores, sua devoção. Depois virou-se bruscamente e imagino ter-se deliciado numa risada silenciosa e comprida. Deixei a clesma sobre a mesa, junto com a medalha que me enojava, andei calmamente o corredor central da igreja e, já à porta para sair, encarei tudo. As imagens pareciam desafiar-me e enfrentei-as: virei-me, bastante ereto e saí simplesmente, sem me ajoelhar, sem pedir que algo dali me acompanhasse pela rua. Tentaria ser outra pessoa.



20 de dezembro de 2013

[205] Episódio 2: O silêncio que procede ao esporro


Silêncio.

Adão viveu cento e trinta anos, gerou um filho e deu-lhe o nome de Set, que viveu cento e cinco anos, e depois gerou Enos, que viveu noventa anos, e depois gerou Cainan. Cainan viveu setenta anos, e depois gerou Malaleel. Malaleel viveu sessenta e cinco anos, e depois gerou Jared. Lúcia... Quem gerou Lúcia? Eu não faço ideia de quem gerou Lúcia. Lúcia gerou Márcio e o vendeu. Cléber e Martha compraram Márcio, não geraram porra nenhuma. Quem Márcio gerará? Boa coisa não vai ser, porque Márcio não presta...

Silêncio.

Eu não gostava muito da claridade, e a cortina ficava fechada em tempo integral, eu me sentia bem mais confortável assim. Uma semana após a mudança, ainda havia caixas para todos os lados. Silêncio. Eu não tinha muitos móveis, muito menos guarda-roupa, tudo ficava nas caixas. As únicas coisas que eu trouxera da casa daqueles dois foram minhas roupas, objetos pessoais, as coleções de livros e revistas e meu computador (além do bagulho), entretanto, agora eu já tinha conseguido comprar um fogão, uma geladeira, uma escrivaninha, uma cadeira de escritório – para trabalhar mais confortavelmente – e um colchonete. Este último, novo, os demais, porém, usados. Era o que dava para fazer com as parcas economias que eu tinha, com o tempo, eu conseguiria mobiliar a casa e viver decentemente. Havia também o Félix, esse gato filho da puta e interesseiro, como qualquer outra criatura... Aproximou-se de mim silenciosamente enquanto eu trabalhava na logomarca de uma clínica de fisioterapia. Parei por um instante para fazer-lhe carinho, era só o que bastava para ser feliz, além de um lugar quentinho para morar, e comida farta (eu já disse isso aqui).

Voltei ao meu trabalho. Todas as logomarcas de clínicas de fisioterapia eram uma ilustração ou silhueta de alguém com a mobilidade dificultada, em uma cadeira de rodas, ou muletas. Se eu fizesse qualquer coisa desse tipo eu não estaria fazendo nada de novo. O que eu criaria de novidade, para imagens já tão batidas para logomarcas. A fisioterapia visa restabelecer os movimentos dos pacientes, então, eu precisava passar a ideia de movimento, e não de imobilidade. Fiz os traços de uma pessoa, da altura do abdômen para cima, sem rosto, os braços abertos como em um exercício... Félix pulou em meu colo, estava inquieto, queria mais carinho. No antigo Egito eles ajudaram a combater os ratos que infestavam a região, causando doenças e danificando plantações. Se tornou um ser sagrado, era tratado como membro da família, fazendo jus até aos mesmos ritos fúnebre que os humanos sendo embalsamados e sepultados. E ai de quem matasse um bichano! Era condenado à morte! E por falar nisso, há quem diga que eles podem sentir a morte de alguém se aproximar. Será que eu morreria em breve?

– O que foi, Félix? – perguntei ao alisar seu pelo da cabeça, correndo minha mão pelo pescoço e dorso. – Tenho quanto tempo de vida? – continuei, ele apenas me olhava, enigmático. Assustei-me ao ouvir batidas na porta. – É... acho que ela chegou... – murmurei ao me levantar para atender. O gato saltou de meu colo e me acompanhou.

– Posso entrar? – perguntou Cléber quando abri a porta. Cléber era jornalista, e em viagem a serviço, não estava em casa quando saí de lá. Era magro e careca, os olhos fundos, com olheiras escuras sob estes. Os cabelos que circundavam a cabeça eram grisalhos, mais puxados para o loiro acinzentado. Sempre bem vestido, usava um terno negro, assim como sua gravata, tinha por volta de 1,70m de altura. Encarei-o por alguns segundos e saí de sua frente, indicando o interior da casa com o braço estendido, sem nada dizer. Fechei-a logo após ele entrar e segui-o.

Caminhou pela sala escura, cuidadosamente, entre as caixas até alcançar a janela e depois de breve hesitação puxou as cortinas, deixando a luz do céu entrar.

– Quem te deu o direito de vir em minha casa e... – esbravejei com o dedo em riste.

– Cale a boca! Cale a boca! – gritou me interrompendo, também com o dedo ereto em minha direção. Estava transtornado, as lágrimas inundavam os olhos vermelhos, as veias saltavam de seu pescoço. Olha só no que você se transformou... em um mendigo! O que é isso? Um monte de caixa espalhada, escuridão... e essa barba por fazer?

– Você não pode... – tentei intervir, perturbado.

– Eu posso o que eu quiser! – vociferou batendo no peito. – Ouviu bem? Eu posso o que eu quiser... – murmurou. Félix começou a se trançar em minhas pernas. – Você está se comportando feito um moleque, só um moleque se comporta dessa forma. Ande, junte suas tralhas e vamos voltar para casa, sua mãe está te esperando... – disse caminhando e desviando o olhar.

– Ela não é minha mãe! – esbravejei e tampei os ouvidos. O gato se assustou e correu para um dos cômodos.

– É sua mãe! Ela é tão sua mãe como eu sou seu pai... – afirmou se aproximando. Afastei-me.

– Não seja ridículo, Cléber, vocês me compraram, como qualquer coisa... é isso que eu sou? Uma coisa?

– Você não sabe o que está falando, Márcio...

– É claro que eu sei! Ela não te contou? Eu ouvi minha m... a Martha conversando com aquela... Lúcia. Vocês pagaram por mim! Eu fui comprado! – resmunguei, batendo as mãos espalmadas no peito.

– Márcio, você se comporta feito um menino. Logo você que sempre foi um cara maduro à beça para sua idade, sempre precoce... Toda essa revolta lembra a pirraça de um garotinho. Talvez devêssemos ter contado isso a você nessa época...

– É evidente que sim! Vocês deveriam ter me contado antes. Será que é tão difícil perceber isso? – disse ao caminhar para a janela e fechar as cortinas.

– Erramos! Erramos, meu filho! Todos erram, mas não dá para consertar um erro com outro, entende? Martha achou que se você soubesse ia amar menos a ela. Eu não acreditava nisso, mas ela é minha mulher e a apoiei. – explicou se aproximando. Encarou-me, minhas lágrimas não tardariam.

– Vadia... – sussurrei e ele me esbofeteou, sem dúvidas.

– Limpe essa sua boca para falar da Martha, seu moleque! Respeite sua mãe! – vociferou, ameaçando dar outro tapa e eu não desviei o rosto. Ele se conteve e baixou a voz. – Nós te demos tudo que você precisava... e não estou falando de brinquedos e roupas, de algo material. Te demos amor e carinho, proteção, tudo que uma criança precisa para se desenvolver de forma saudável. Nós te demos tudo...

– Esqueceram-se da verdade... – retruquei. Peguei um cigarro na escrivaninha e acendi. Ele se aproximou e tomou o cigarro de minha mão, amassando e atirando ao chão.

 – Não acenda um negócio desses na minha frente... – censurou-me, eu apenas o olhei de volta. Ele suspirou e voltou a si.

Cléber era um cara bacana, acho que eu sentia mais raiva de Martha. Acredito que toda minha revolta era pelo tamanho da admiração que eu nutria por eles. Não conseguia os ver agora diferentes de traidores, mentirosos, embusteiros...

Depois de um longo silêncio, continuou seu discurso.

– Lúcia foi trabalhar em nossa casa com dezessete anos. Foi indicação de uma tia de Martha, a empregada dela tinha uma irmã que passava por dificuldades, e o emprego para sua sobrinha ia melhorar e muito a qualidade de vida da família. Ela era apenas uma menina...

Completaram-se dois anos de serviços prestados a nós, aliás, muito mais que uma empregada, ela tornou-se uma amiga, a relação entre nós três sempre foi muito cordial. Nessa época, depois de inúmeras tentativas, descobrimos que não podíamos ter filhos. Certo dia, Lúcia chegou em casa transtornada, chorava e falava coisas desconexas. Estava grávida... – explicava-me cuidadosamente. Comecei a chorar, desesperadamente, aos soluços, mas sem dizer uma palavra; cabisbaixo, evitava encará-lo naquela condição. Ele se aproximou.

– Seu namorado, ao saber, disse que o filho era de outro, e não dele. Agrediu-a e sumiu. Ela pretendia abortar, mas nós a impedimos, prometemos que daríamos conforto e segurança a ela, pelo tempo que precisasse. O tempo foi passando, fomos nos afeiçoando à criança que nem havia nascido, quando ela nos surpreendeu, dizendo que iria embora, não teria como criar aquela criança. Voltaria para casa de sua mãe, no interior, talvez fosse melhor para ela e o bebê. Sabíamos que não, a situação de sua família era de extrema pobreza. Foi então que surgiu a proposta... adotaríamos a criança, e em troca, daríamos para ela uma considerável quantia em dinheiro que podia garantir uma situação confortável para sua família. Você nasceu, e ficou sob seus cuidados até um ano e meio, quando decidimos que era hora de ela partir. A separação foi difícil para todo mundo, mas superamos. Vê? Nós nunca te negociamos feito uma mercadoria. As coisas foram acontecendo assim... – concluiu e apoiou a mão em meu ombro, suspirando. Suas lágrimas voltaram e ganharam seu rosto. Cléber fungava. Depois deu um tapinha em meu ombro, nos abraçamos e ficamos assim sabe-se lá por quanto tempo, chorando juntos.

– Eu te amo, meu filho... – disse ele segurando minha a cabeça e me olhando firmemente.

– Eu também te amo... – respondi. Cléber abraçou-me fortemente, depois me soltou, limpou as lágrimas e seguiu para a saída.

– Volte logo para casa, sua mãe chora todos os dias... – rogou, ao girar nos calcanhares, a meio caminho.

– Minha casa agora é aqui... pai... – expliquei. Cléber assentiu com a cabeça, contrariado, virou as costas e saiu.


Escuridão. Silêncio.


Silêncio...


Desta vez, mais forte e pungente.

11 de dezembro de 2013

[502] Reencontro

Recolho-me aos sonhos... Vejo o que os olhos não alcançam... Sinto o que a pele não percebe...

Fico feliz e em paz.


Sonhos são preciosidades: Não pertencem a ninguém além de nós mesmos.



Encontro-me em fase de realizações. Chega de passado! Transformá-lo em presente é o foco. Paolo está bem. Retomei a vida em meu ninho cinza e prossigo...

Recebi um e-mail resposta de uma empresa de Marketing e Comunicação:

“Íris Sinah, fiquei surpreso com seu contato através da empresa onde trabalho. Soube que viu publicada uma reportagem minha sobre a mobilização dos professores em uma revista para a qual trabalho faz anos.
Antes de qualquer aproximação virtual, preciso saber se é você a Íris que tanto preciso reencontrar. Que tal um encontro?
Aguardo, ansioso.
Daniel”

Marcado o encontro! Ansiosa, diante do espelho, vaidosa. Trocadas várias mudas de roupas, foi o vestido vermelho o escolhido. Insegurança normal para quem há mais de vinte anos não vê aquele que um dia foi o homem de sua vida.

Trancadas as janelas e portas, lá fui eu!


Uma cafeteria, 17 horas, dia quente, coração ardendo, mãos trêmulas, boca seca, olhos atentos. Diante de uma xícara de café, aguardava. Como seria? O que eu deveria fazer? Beijá-lo, abraçá-lo? Não sentiria vontade... a princípio, seria forçado.


Uma voz: “Íris Sinah?”. Virei-me e o vi ali, em pé, olhando-me como quem quer descobrir o passado, tirar-lhe o véu, escancará-lo.

- Olá. Sim, sou Íris. Íris Sinah. – Ofereceu-me sua mão e, automaticamente, segurei-a e me levantei.

- Esperou muito tempo? Sabe, né? Às vezes acontecem situações inesperadas bem na hora de sair, vida de jornalista é cheia de surpresas.

Sentamo-nos.

- Imagino.

- Mas surpresa maior do que revê-la não é como nenhuma outra. Você não imagina a emoção que sinto agora. Queria que você soubesse... – interrompi, não o deixei completar a frase.

- Não há do que se desculpar, não há do que se arrepender. Eu não me preocupo com o que foi. Sou o agora. E minha família sempre me falou a verdade e me ensinou a viver pela verdade.

- Minha filha. Posso chamá-la de minha filha? Afinal... – novamente não permiti que concluísse sua ideia.

- Sempre. Apesar de tê-lo visto apenas quando criança, o tempo que vivemos foi intenso e feliz. A separação foi inevitável. Acontece. - Sorri. – Na verdade é o que mais acontece. Quando a gente está muito feliz, uma reviravolta traz um pouquinho de tristeza... Mas tudo passa, o tempo ajuda.

- Vô Samuel, né? Ele dizia isso e você aprendeu direitinho.

- Minha família era preciosa. Hoje sinto-me órfã do brilho e do valor, das joias raras que perdi em vida, mas é preciso continuar...

- Que bom que me procurou. Logo que sua mãe foi embora e se casou...

- Não se justifique. Estou aqui e agora. Fale-me um pouco de você.

[...]

Daniel Posteur, jornalista de uma empresa de comunicação, famoso, casado, pai de dois filhos adolescentes. Eu, filha encantada com suas histórias, sem traumas e neuroses.                                                        
                                                     Feliz por encontrá-lo!

Foram muitos cafés e horas, nem percebemos que já se passavam das dez da noite e precisávamos voltar a real.

Levou-me até em casa. Não subiu. Também não o convidei. Já sabia onde e como me encontrar. 

Claro que nos veríamos outras muitas vezes. Ao me despedir senti vontade de abraçá-lo. Mas nem precisei tomar a iniciativa. Assim que o carro parou diante do prédio, ele me puxou e me deu o abraço mais forte e verdadeiro que há tempos não recebia. Beijou-me a testa e disse que me ligaria. 

Voltei à menina que um dia fui. Despojei-me da carcaça criada pelos últimos anos, desprotegi-me, entreguei-me ao acalanto e me permiti ser feliz.

Não, não era um sonho! Era um reencontro fantástico!

Entrei no edifício, no meu recanto, embriagada de tanta alegria. O corredor parecia comprido, bem mais do que realmente é. E eu, caminhando levemente pelo piso frio, na passarela, em curso direcionado para o sucesso. 


Ouvi uma música vinda de um dos apartamentos. Parei e fiquei ali por um tempo degustando as palavras melodiosamente cantadas pela Simone: 

Então é Natal, e o que você fez? O ano termina, e nasce outra vez. Então é Natal... Do velho e do novo, do amor como um todo. Então bom Natal, e um ano novo também. Que seja feliz quem souber o que é o bem...”.

Sim, pensei. É Natal. E quem disse que a mágica dos sinos de Belém não existe?




21 de novembro de 2013

[205] Episódio 1: A verdade vos libertará

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Gosto de café forte. A receita é muito simples: duas colheres de sopa bem cheias de pó, para uma xícara de água, e duas colheres de açúcar. Eu sempre faço a quantidade exata para ser consumida na hora, não gosto do sabor oxidado que o café ganha ao descansar na garrafa, nem do sabor queimado das cafeteiras.

Fervo a água – já misturada com açúcar – e passo o café diretamente na xícara. Escolho o melhor produto, tem um monte de marca barata por aí em que o café é moído com milho e gravetos. O sabor é horrível. E o café não é barato porque a empresa é boazinha, o produto foi muito mal produzido e o povo, em sua maioria com renda baixa, vai consumir, evidentemente, o mais barato. Essas firmas devem estar ganhando rios de dinheiro.

Percebem como há sempre um interesse por trás de tudo? Sempre há.

Acabei de pintar a sala, era o último cômodo a ser reparado. Ainda tenho muitas coisas fora do lugar, apesar de não ter tantos móveis assim. Há várias caixas com livros e revistas espalhadas, aprecio bastante a leitura, e gosto de colecionar os volumes. O apartamento é muito bom, é amplo, arejado, exatamente como a moça da imobiliária disse há uns cinco dias.

– O senhor vai gostar, o apartamento é amplo, arejado, realmente muito bom... O senhor tem mulher, filhos? – perguntou ao me oferecer as chaves.

– E o que você tem a ver com isso? – respondi de pronto ao pegá-las.

– Err... me perdoe... – desculpou-se encabulada.

Levantei-me e saí da loja, mas ao cruzar a soleira da porta, ouvi som de risinhos lá dentro e voltei.

– Qual é o motivo do riso?

– Desculpe... não estamos rindo do senhor... – respondeu uma funcionária no fundo da sala. – Foi um mal entendido, só isso. - concluiu. Seu olhar era irônico, suas desculpas não eram sinceras.

– Eu vou dizer o que é mal entendido. - exclamei com o dedo em riste. – Mal entendido... é vocês quererem saber da minha vida e debocharem de mim. Eu não tenho que dar satisfações sobre nada pra ninguém, muito menos pra vocês! Eu posso processá-las e, eu tenho certeza, que o seu patrão vai colocá-las na rua antes que o processo termine... – concluí e tornei a sair. Dessa vez não houve risinhos.

Hoje em dia as pessoas se interessam cada vez mais pela vida alheia. Tem gente que chega ao cúmulo de vasculhar o lixo dos vizinhos... Isso é realmente o cúmulo! Idiotas! Quem elas pensam que são para ficar rindo de mim daquele jeito? Nunca gostei de deboche. Talvez seja por causa disso que eu nunca tive muitos amigos, nem muitas namoradas. Para falar a verdade, eu acho que eu não tenho amigo algum. Nunca consegui trabalhar em firmas, e acabei me tornando design gráfico. Trabalho tranquilamente na solidão de meu quarto e c’est fini.

Aos treze eu tive uma crise nervosa na escola, cheguei a ser hospitalizado por algumas horas. Os caras mais populares da turma estavam me sacaneando – o que chamam hoje por bullying – e eu não sabia como reagir. Joguei minha mesa pro alto e fiz menção de ir na direção deles para agredi-los, mas desmaiei antes de alcançá-los. Continuei a ser a chacota da escola, o cara estranho que não parecia achar lugar no corpo em que Deus lhe encarnou, o sujeito retraído sem poder de reação. Mas o clonazepam que passei a fazer uso depois desse episódio e as consultas com o psicólogo, me tornaram insensível a esse tipo de coisa, e a mais um monte de coisa por aí.

Eu tive diversas crises nervosas depois disso, a última foi há cerca de duas semanas. Tempos atrás eu avistei minha mãe conversando com uma ex-empregada em um dos supermercados da cidade. Elas não me viram. A expressão das duas não era das melhores, minha mãe estava apreensiva, parecia não querer ser vista com a... Luzia... acho que era Luzia o nome dela. Eu a vi em outras ocasiões perto do meu prédio, acredito que morava ali próximo. Sempre foi muito cordial comigo.

Mas naquela quinta-feira, eu voltava do psicólogo – devia ser por volta das 17 horas – e entrava pela porta de serviço, que dá direto para a lavanderia do apartamento. Eu ia por a mão na maçaneta, mas ouvi uma discussão e parei...

– Lúcia, eu não vou te dar mais dinheiro, chega!

– Você é quem sabe. Eu sei tudo sobre o garoto, será muito simples abrir seus olhos...

– Você não se atreva... - ameaçou minha mãe, com um tom de voz cada vez mais inflamado.

– E porque não? É um direito dele! - argumentou a ex-empregada. Falava ironicamente, muito diferente do que eu a conhecia.

– Direito dele, ou não, isso é um assunto que cabe somente à nossa família! – retrucou, abaixando a voz repentinamente, chegando quase a sussurrar.

– Família... você é patética. Uma família montada em cima de uma mentira!

– Cale a boca! Era para você ter sumido, foi para isso que te pagamos!

– Ora, eu me arrependi...

– Depois de 23 anos? A única coisa que você quer é dinheiro, sempre foi por dinheiro...

– E quem não quer dinheiro?

– Nos deixe em paz... – disse minha mãe, sua voz se distanciou um pouco, depois tornou a se aproximar. – Tome isso. Acha que é suficiente desta vez para sumir para sempre de nossas vidas?

– Talvez seja, é muito dinheiro... mas sempre será pouco para pagar a ausência de um filho...

– O Márcio é meu filho!

– Ele não é seu filho e você sabe muito bem disso!

Abri a porta rapidamente, eu não podia ouvir mais... As duas assustaram-se, não souberam como reagir assim como eu aos meus 13 anos.

– Meu filho, eu posso explicar!

– Que história é essa? - perguntei transtornado.

– Adeus, Martha... boa sorte, garoto... – murmurou Lúcia ao cruzar comigo na entrada.

– O que essa mulher está dizendo...

– Fica calmo... – disse a senhora já com lágrimas nos olhos.

– Como vou ficar calmo? Como eu posso ficar calmo? Me explica essa história agora, porque eu não posso esperar mais... eu... eu...

– Meu filho, eu quero dizer que eu e seu pai te amamos muito...

– Chega dessa conversa fiada e esses sentimentalismos, não é hora disso! – gritei, gesticulando e ela chorou ainda mais. – Olha, eu não sou burro e ouvi muito bem o que ela disse... seja sincera uma só vez na vida! - esbravejei. – Isso é verdade, eu não sou teu filho?

– Márcio...

– Fala!

– Meu filho... eu...

– Fala logo!

– Não! Não! Não é... - respondeu ela aos gritos, enterrando o rosto nas mãos e desabando em lágrimas, desesperadamente. Eu teria pena dela se não tivesse tanta raiva.

Ficamos em silêncio por um breve momento, chorando. Eu não sabia o que dizer, não sabia o que pensar. Por segundos toda a minha vida passou diante de meus olhos, todos os momentos que vivi com meus pais, diversas situações... aniversários... festas... tudo uma grande...

– Mentira! Tudo uma grande mentira é o que é a minha vida! – esbravejei a plenos pulmões.

– Meu filho... apenas este detalhe, este fato... o resto, tudo é verdadeiro... nossos sentimentos, nosso amor...

– Cale a boca, sua vadia! - gritei dando um soco na mesa. – Vamos por tudo em ordem agora, somos dois adultos conversando... – disse tentando me recompor. Aquela mulher que eu jurava conhecer parecia que ia morrer de tanto sofrimento, mas eu já não me importava mais. – Para começo de conversa, não me chame de filho, afinal, eu nunca fui...

– Para! Para com isso, por favor, eu estou sofrendo demais!

– Está vendo é esse o problema! Nunca foi por mim, nem pelo Cléber, nem por aquela cadela que me vendeu... foi apenas por você. Tudo para realizar esse desejo de ser mãe... Dane-se o enjeitado e todo o mundo!

– Não foi assim... – balbuciou.

– Mas é claro que foi! Mas olhe, vocês estão de parabéns... – disse batendo palmas ironicamente – me enganaram direitinho... Eu sempre estranhei o fato de não haver uma foto sequer de sua gravidez, de não me parecer fisicamente com nenhum dos dois, de não ter o mesmo sangue... mas nunca... nunca pensei nisso...

– Não era para ser assim, meu filho! – tentou argumentar vindo em minha direção.

– Não me chame de filho! – gritei segurando fortemente em seus pulsos e impulsionando-a de volta. – Quantos sabiam? Mas que pergunta idiota, todos sabiam...

– Não, Márcio... apenas alguns da família...

­– Para com isso, cara! Você é burra? Um segredo bem guardado está apenas com você. Todos sabiam, menos o idiota aqui. Agora entendo os olhares, o jeito estranho que as pessoas falavam comigo... Merda! Merda! Deviam dizer: “Olhem só, lá vai o enjeitadinho...”

– Meu filho, fique calmo, nós te amamos... isso é só... é só uma fase... – tentava me persuadir aquela velha senhora de olhos vermelhos de tanto chorar.

– Para Martha, que você só se complica... – retruquei, limpando meu nariz com as costas da mão. Virei-me e segui para a saída.

– Não me chame assim... – pediu aos prantos enquanto eu abria a porta.

– Esse não é o seu nome? É assim que eu vou te chamar agora... – respondi enquanto caminhava pelo corredor. A velha caminhava atrás.

– Espere aí! Aonde você vai? – perguntou ao apressar o passo para me acompanhar.

– Sei lá... pra qualquer lugar longe da minha vida. Vou esfriar a cabeça...

– Espera meu filho, você está muito nervoso, não faça uma besteira...

– Eu não sou imbecil o suficiente...

– Espere! Vamos conversar!

– Eu não tenho mais nada para conversar com você... – respondi enquanto a porta do elevador se fechava.

Fiquei dois dias fora de casa. O suficiente para encontrar este apartamento amplo, arejado e realmente muito bom neste edifício cinza como a minha vida. E o aluguel nem é tão caro, dá para pagar perfeitamente bem com o meu trabalho.

Lembram o que eu falei sobre os cafés? Há sempre um interesse por trás de tudo, sejam com os cafés, com a TV, ou com as pessoas. Há sempre uma outra intenção, um outro motivo. Desconfie sempre. O mundo está se tornando uma caixinha insuportável cheia de gente cada vez mais individualista e egocêntrica. Nem mesmo o filho da mãe do Félix – um gato preto de olhos tão amarelos quanto misteriosos – está aqui porque me ama, mas sim por conveniência, porque há comida, um lugar quentinho para dormir e um humano para lhe fazer carinho de vez em quando. Mas pelo menos ele não reclama dos meus cigarros.

Aliás, gosto de cigarros...